- Pai... Pelo amor de Deus... Diz que não é isso que eu estou pensando...
- Calma, Cauã! Sua mãe está bem!
Que alívio!
- Graças a Deus!!! Ocorreu tudo bem no parto então?
- Sim, filho! Os três estão bem! É um milagre!
Eu sabia que isso ia acontecer. Eu sabia que Deus não ia levar a minha mãe sem que antes nós pudéssemos corrigir os erros do passado, ou pelo menos amenizá-los.
- E os bebês? – perguntou a moça que eu não conhecia.
- Eles são sadios. Nasceram com 41 centímetros e cada um com pouco mais de 2 quilos. Eles vão ficar internados por uns dias apenas para desencargo de consciência.
Lembrei do Nícolas. Será que eles iam ficar na neonatal também? Eu tive que perguntar.
- Eles estão na UTI?
Edson me olhou com aqueles olhos carregados de ódio. Se aquele olhar matasse, eu teria morrido naquele momento.
- Isso não é da sua conta, MOLEQUE. O que está fazendo aqui? Sai daqui e vai correr atrás de quem é da sua laia! Some!
- Se eu estou aqui, EDSON, é porque o seu filho predileto solicitou a minha presença. Quer você queira, quer não, eu tenho direito de estar aqui porque INFELIZMENTE também faço parte dessa família e tenho direito de saber dos meus irmãozinhos, porque eles não merecem ter nascido no meio desse ninho de cobras!!!
- Melhor ser uma cobra do que ser um veado como você!!!
Eu abri a boca pra responder, mas fiquei sem reação. Ele ia me pagar por aquela ofensa. Ah, ia!
- Pai, já chega! – Cauã se meteu. – Deixa o Caio em paz! Eu é que chamei ele aqui e aqui não é lugar para brigas. Já chega!
- Quem mandou você chamar esse nojento, Cauã? A minha vida estava ótima sem ele por aqui!
- Só que ele também é seu filho, pai.
- Deixa, Cauã – eu falei. – Deixa. Eu não sou filho de uma pessoa como essa. Não se preocupa, pode deixar ele falando. O que vem de baixo não me atinge. Se isso te faz feliz, EDSON, eu estou indo embora. Já ouvi o que queria ouvir, mas quero que fique bem claro que você ainda vai ouvir falar de mim. Me aguarde!
- Está me ameaçando, MOLEQUE?
- Se a carapuça serviu, EDSON, pode dormir nela se você quiser. Muito boa tarde, passar muito bem!!!
E dizendo isso eu saí daquela maternidade, com um peso a menos nas minhas costas. Pelo menos a minha mãe estava bem e meus irmãozinhos também. No fim das contas, tudo tinha dado certo.
Minha sintonia com o Bruno era tão grande que bastou eu pensar em ligar pra ele para o meu celular tocar. Era ele que estava me ligando.
- Eu ia te ligar agora.
- Jura? E aí, sua mãe?
- Nasceram meus irmãozinhos, amor!
- E eles estão bem, amor? Sua mãe como está?
- Graças a Deus estão todos bem. Os meninos nasceram com pouco peso e ficarão alguns dias no hospital. E minha mãe está bem. Não tive muitos detalhes porque o meu pai começou com o showzinho dele.
- AI que bom que deu tudo certo, amor. Eu fico feliz!
- Obrigado! Ei, falando em show, você vem mesmo pro Jorge e Mateus, não vem?
- Lógico! Você acha que eu vou perder a chance de ficar ao seu lado? Nem em sonhos!
- Seu lindo! Estou morrendo de saudades.
- Eu também, amor! Eu tenho que ir nesse show pra supervisionar suas olhadas pro Mateus, né?
- Seu idiota! Isso não teve graça!
Depois de falar com o Bruno, eu falei com a Dona Elvira. Ela ficou feliz em saber que deu tudo certo com o parto e disse que era para eu continuar mandando notícias. É claro que eu ia fazer isso.
E depois eu fui direto pra casa do Víctor. Eu estava muito cansado e tudo o que eu mais precisava naquele momento era de uma boa cama e um bom prato de comida.
Quando cheguei na esquina da casa do meu melhor amigo, dei de cara com o meu filho. Ele estava sentado na frente de uma casa de portão branco e estava lambendo a pata.
- Enzo Monteiro da Silva e Silva! O que está fazendo aqui fora, rapaz? Já pra casa!
E não é que ele me obedeceu? Eu fui andando e ele foi atrás de mim, com o rabo levantado, como sempre fazia. Que lindo!
Eu entrei e encontrei todos reunidos na sala de estar. Aproveitei que eles estavam ali para contar as boas novas.
- E aí, amigo? O que aconteceu?
- Nasceram. Os gêmeos nasceram e deu tudo certo. Não aconteceu nada com ninguém, graças a Deus!!!
- Ai que bom, Caio! – Susana ficou contente. – Deus é maravilhoso.
- É verdade! Roberto, eu já estou disponível para a sua empresa. Fui demitido hoje.
- É mesmo, Caio? Que maravilha!!! Como conseguiu essa façanha?
- Conversei ontem com o Cláudio e hoje ele me desligou. Graças a Deus.
- Que bom! Então amanhã mesmo a gente já vê os trâmites burocráticos de sua contratação.
- Tudo bem.
- No café da manhã eu te passo a relação de documentos que você vai precisar entregar.
- Combinado então.
- Já jantou? – perguntou Dona Maria.
- Não, Dona Maria. Ainda não.
- Então eu vou preparar seu prato.
- Não se preocupe, Dona Maria! Eu ainda quero tomar banho.
Antes de tomar banho, liguei de novo pra Jana porque o nosso papo tinha ficado pela metade e também porque eu já tinha novidades para contar a ela.
Contei da cena do carro pra minha irmã e ela quase teve orgasmos múltiplos do outro lado da linha:
- AI QUE BADAAAAAAAAAAAAAAAAAALO!!! ADOOOOOGO!!! E EU NÃO TAVA AÍ PRA TIRAR UMA FOTO DELES? AAAAAH, QUE PENA!!!
- Pois é, amiga! Eu ri muito! Meu irmão ficou preto passado na graxa.
- Bem feito! “Pi, pi, pi, pi, pi”, olha o recalque!!! Manda dois beijos pra ele!
- É! Foi massa!
Não pude falar muito com a Jana, afinal a Dona Maria tinha preparado o meu jantar. Só por causa disso eu desliguei, tomei banho e comi no quarto, enquanto conversava com o Víctor.
- E você pretende falar com eles?
- Pretendo, claro – respondi. – Mas só na hora certa. Agora não.
- E quando vai ser essa hora certa?
- Não sei não, Víctor! Acho que eu só vou saber na hora.
- Ai, Caio... Não me acostumo com esse seu sotaque carioca! Juro por Deus.
- Ah, vá! Como se eu tivesse falando como um carioca da gema. Meu sotaque é “cariolista”! Metade carioca, metade paulista!
- Só você mesmo, Caio! Só você mesmo! Mas me diz, quando a gente vai pras baladinhas curtir a night?
- Por mim a gente já pode ir nesse final de semana mesmo. Eu quero aproveitar a minha vida de desempregado enquanto posso.
- E aí, está feliz com a saída da loja?
- Muito, amigo! Eu não aguentava mais aquela vida.
- E seus chefes do Rio já sabem?
- Por minha boca não. Só se o Cláudio ligou ou mandou e-mail. Quando eu for no Rio eu vou visitá-los porque quero falar umas verdades pra eles. Me enchi.
- Hum... Ei, dá o Enzo pra mim?
- OI? Jamais! Ele é meu filho, rapaz!
- Gosto tanto dele! Ele é tão fofo!
- Ele é meu, tira os olhos.
- E ele é muito inteligente, cara! O gato faz cocô no vaso sanitário! Quando vi quase fiquei louco.
- Ele é um gentleman. Meu filho mais lindo. Eu o amo, né Enzo?
Víctor e eu passamos horas falando e ele só saiu do meu quarto quando sentiu sono e foi dormir, o que me deixou grato, porque eu precisava orar, pensar e dormir. Eu estava bem cansado.
Depois de minhas orações o meu pensamento voou até o Recreio no Rio de Janeiro e eu fiquei pensando em meu namorado.
Peguei meu celular e fiquei olhando uma foto dele em que seus olhos azuis estavam bem aparentes. Que saudade!
Como seria o meu futuro à partir daquele momento? Eu ainda tinha muitas dúvidas, muitas incertezas e muito medo.
Como seria o novo emprego? A nova rotina como Gerente de Recursos Humanos? Como seria enfim trabalhar na minha área? Com certeza muito diferente de trabalhar com vendas, como eu sempre fiz durante toda a minha vida profissional lá no Rio de Janeiro. Com exceção do Call Center, é claro.
Depois de vários anos trabalhando com o público, à partir daquele dia eu iria viver enfurnado em um departamento pessoal, iria mexer com contratação, com demissão, com folha de ponto, folha de pagamento, com férias, com INSS, com benefícios... Tudo o que eu aprendera na faculdade, anos antes.
Eu não ia mais ouvir xingos de clientes, não ia mais cobrar metas da equipe e não ia mais ter que correr atrás de números. Eu ia fazer algo novo e totalmente diferente. Eu merecia.
Eu merecia porque ficar naquele ritmo de gerente de vendas estava sendo muito desgastante pra mim. Eu precisava de novos horizontes, novas oportunidades... Eu precisava mudar de ares, conhecer novas pessoas, fazer novos amigos e ter uma vida mais tranquila.
Mas não posso negar que eu ia sentir falta do passado. Eu ia sentir falta daquela loucura que era ficar correndo de um lado para o outro,
daquele ritmo acelerado de todos os dias, daquela rotina maluca que só eu entendia, só eu sabia controlar. Isso me faria falta.
Lembrei dos meus primeiros dias na loja e lembrei de como o meu começo foi difícil, mas ao mesmo tempo feliz e prazeroso.
Lembrei também que eu não queria ser promovido de jeito nenhum, mas que foi através dessa promoção que eu estava onde estava.
Sim, porque se eu não tivesse sido líder na loja, eu não seria líder na empresa onde o Roberto trabalhava. Se eu estava ali, era por causa da loja e de certa forma, por causa da Jana. Foi ela que me colocou lá dentro. Foi ela que fez a minha cabeça para entrar naquela filial.
Conclusão final: eu tive que agradecer a Deus por ter chegado onde cheguei e por ter sido tão feliz no passado. Eu estava verdadeiramente grato por tudo. Aquele ciclo de minha vida foi muito bom, foi maravilhoso.
A Eduarda, por exemplo, não foi uma líder, foi uma mãe. Até virar gerente regional, até querer me mandar para São Paulo. À partir daí ela não foi mais uma mãe e passou a ser apenas a minha chefe. uma chefe que já não era como antes, infelizmente.
Já o Jonas, foi um pai do começo ao fim. Foi ele que me incentivou a virar líder, foi ele que enxergou o potencial dentro de mim, foi ele que me desenvolveu e foi ele que me auxiliou em todos os momentos de dificuldade. Eu tive que mandar uma mensagem pra ele contanto que tinha sido mandado embora.
E os tantos amigos que fiz naquela filial eu levaria para sempre. Até os inimigos eu levaria para sempre em minha mente, pois foram eles que me tornaram forte e imbatível. E que Deus os abençoasse.
Entretanto, eu não tinha mais que pensar no passado. Eu tinha que pensar no presente e planejar o futuro. E foi nesse momento que eu resolvi abrir a minha mente para a nova oportunidade que eu estava recebendo.
Deus estava me dando uma nova chance, um novo capítulo em minha vida e no que dependesse de mim, aquele capítulo seria escrito de uma forma totalmente diferente, mas também de uma forma brilhante como foi escrito o da loja. Era isso que eu queria, era isso que eu ia buscar e era isso que eu ia conseguir. Eu estava subindo mais um degrau, mas ainda faltava muito até chegar no topo da escada, que era onde eu queria chegar.
Quando eu entrei no quarto de hotel, quase caí pra trás, tamanha a minha felicidade. Era um hotel incrível e perfeito! Eu amei o quarto onde ficaria hospedado pelas próximas semanas, amei mesmo! E o melhor de tudo, é que a hospedagem estava sendo financiada pela empresa onde eu ia trabalhar até eu arrumar a minha casa. Isso sim é que era vida!!!
- Olha isso daqui... Que luxo!
Eu tinha uma cama de casal só pra mim, ar condicionado, televisão de tela plana, frigobar, um telefone e uma varanda com uma vista perfeita para um mundo cheio de concreto. Eu gostei demais daquela oportunidade.
- Obrigado Deus!
Depois que me instalei fui direto pra cama e é claro que pensei no Bruno, mas isso me fez ficar bravo, porque já estávamos quase na semana do Natal e até aquele momento ele não tinha aparecido para me visitar. Fiquei chateado.
Será que ele não queria me ver? Será que estava contente sozinho no Rio? Ah, Caio... Como você é idiota! Você já está pensando besteira demais. É melhor parar com isso! Quando for tempo, o Bruno irá aparecer.
APÓS O SHOW DE JORGE E MATEUS
Eu não podia acreditar que enfim ele havia chegado.
Bastou fechar a porta do quarto para o beijo rolar. Que saudade! Como eu senti falta daquele filho da puta!
- Caio...
- Cala a boca e me beija, Bruno!!!
Nossos lábios grudaram e não mais se separaram. Ele estava ali! Ele tinha ido para São Paulo apenas para me ver! Como eu estava feliz, meu Deus!
A madrugada do domingo foi ótima e nós pegamos fogo na cama daquele hotel. Bruno e eu literalmente tiramos o atraso e nos cansamos tanto, que dormimos até tarde e nem nos importamos com isso.
- Não acredito que você está aqui – falei.
- Nem eu! Eu estava morrendo de saudade de você!
- Eu também, meu amor! Muita, muita!
Ele havia chegado na noite anterior, exclusivamente para o show do Jorge e Mateus, que nós assistimos no Credicard Hall – atual City Bank Hall.
Como eu estava feliz com ele pertinho de mim de novo! Era tão bom ter meu namorado por perto, era tão gratificante!
- Cadê o meu filho das bolas pretas?
Eu ri.
- Ele está na casa do Víctor. Não quis trazê-lo aqui no hotel, né?
- E se o Víctor roubar meu filho do saco preto?
- Ele bem que quer ficar, mas eu não vou deixar. O Enzo é meu.
- Olha lá, hein?
- Pode confiar. Ninguém vai roubar meu Enzo. E Gertrudes ficou com quem?
- Com o Vítor.
Nós rimos. Nossos melhores amigos eram xarás. Até nisso o Bruno e eu parecíamos.
- Aposto que ele reclamou que a Gertrudes comeria o papagaio dele.
- Reclamou mesmo, mas depois resolveu ficar. Ele ama a nossa filha!
- Quem não ama?
- Digow!
- O Digow é um caso à parte. Ele não conta!!!
Depois do banho, nós saímos para almoçar e logo em seguida eu mostrei a cidade pro meu namorado. Ele não curtiu muito não.
- Não tem nenhuma praizinha aqui não?
- Aqui na capital não. Só no litoral. É mais ou menos umas 3 horas de carro. Quer ir?
- Não! Eu quero ficar com você.
- Disso você não tenha dúvidas!
- E sua mãe?
- Segundo consta, ela está bem. Estava pensando de ir no hospital pra saber notícias.
- Posso ir com você?
- Claro que pode, amor! Que pergunta!
Nós fomos até a maternidade, mas ele preferiu não entrar no quarto da minha mãe, para evitar transtornos. Eu concordei com ele e entrei sozinho.
Ainda bem que ele não entrou, porque a minha mãe não estava sozinha. Meu irmão, meu pai e a menina que eu não conhecia estavam lá. Será que ela era a namorada do Cauã?
- Filho!!! – Fátima ficou radiante quando me viu e acabou se emocionando.
- Olá, boa tarde.
- Boa tarde – só o meu gêmeo e a menina responderam. Edson bufou e saiu do quarto.
- Ai, filho... Como eu queria te ver de novo...
- Você está bem?
- Graças a Deus, filho... Deus salvou a minha vida e a vida dos meus filhos...
- Viu só? Não falei que ia dar tudo certo?
- Eu estou tão feliz, filho! Tão feliz por ter sobrevivido, por Deus ter me dado mais uma chance...
- Eu sabia que seria dessa forma. E aí, quando vai receber alta?
- Dia 26, filho! Um dia depois do Natal. Meu maior presente de Natal foi o nascimento dos meus meninos!!!
- E como eles estão? Já saíram da neonatal?
- Já, já saíram sim. Estão no berçário! Os médicos acharam que não tinha necessidade de ficar tanto tempo na neonatal porque eles já têm um bom peso e já podem ir pra casa.
- Que bom, Fátima. Que bom! Eu vou lá vê-los então.
- Vai sim, filho! Vai sim. Vai ver seus irmãos! Eles são lindos. Não sabe o quanto me emocionei quando segurei aqueles anjinhos no colo.
- Eu imagino! Imagino que seja bem emocionante passar por tudo de novo depois de quase 25 anos, né?
- Sim! Você não imagina o quanto.
- Bom, eu tenho que ir. Passei só pra saber de notícias. Que bom que está tudo bem.
- Obrigada por ter vindo, filho. Muito obrigada!
- Por nada. Até logo e melhoras.
- Volte pra me ver, por favor. Eu não quero perder contato com você.
Não respondi. Apenas a fitei e depois fitei meu irmão.
- Caio, deixa eu te apresentar a Ellen, minha namorada.
- Olá – ela levantou do sofazinho e foi me cumprimentar. – Prazer em te conhecer.
- Oi, Ellen. O prazer é meu.
Ficamos todos calados. Existia um clima de tensão no ar.
- Bom, boa tarde. Até mais.
- Tchau, filho!
- Tchau... Fátima.
Eu saí e fechei a porta com cuidado. Então aquela era a minha cunhada? Pensei que o Cauã ainda estivesse com a Joyce, mas me enganei. A Ellen era melhor que a minha ex-ficante.
- E aí? Alguma novidade?
- Ela está bem e já vai ter alta depois do Natal. Meus irmãos estão no berçário, vamos vê-los?
- Ai, claro! Eu quero muito conhecer meus cunhados. Isso é tão estranho!!!
- Não é?
Nós dois rimos. Era tão estranho falar que dois bebês que tinham menos de uma semana eram cunhados do Bruno. Isso era esquisitíssimo, mas era a verdade.
Bruno e eu nos dirigimos até o berçário e ficamos procurando os meus irmãos, mas foi difícil de localizá-los, porque todos se pareciam!
- Bebê tem cara de joelho, é impressionante - falei.
- Ai, Caio! Que horror.
- Boa tarde. Procuram por algum recém-nascido? – perguntou uma enfermeira.
- Sim, sim! Eu queria ver meus irmãos. Eles são os filhos da Fátima.
- Ah, os gêmeos! Eu já vou mostrá-los, só um segundo.
A mulher entrou no berçário e foi direto para onde os meus irmãos estavam. Quando os meus olhos caíram em cima daqueles dois anjinhos, foi impossível não me apaixonar por ambos. Eles eram lindos e muito fofos, embora fossem magrinhos e pequeninos.
- Ai, que coisinhas mais lindas!!! – meu namorado também se apaixonou pelos gêmeos.
- Nossa, eles são pequeninos!
- Espantado com OS MEUS FILHOS, MOLEQUE?
Quando a voz do Edson entrou nos meus ouvidos eu fiquei totalmente arrepiado. Era como se eu estivesse ouvindo a voz do capeta!!!
Me virei e nossos olhos se encontraram. Ele olhou pra mim, olhou pro Bruno e mediu meu namorado da cabeça aos pés.
- É esse daí que é o seu macho?
Meu macho? MEU MACHO? Ele não deveria ter dito aquilo. Não deveria mesmo!!!
- Meu macho não. Ele é meu homem, meu namorado, meu esposo, meu companheiro, mas meu macho não! Ele não é animal igual a você!
- Escuta aqui, infeliz – o cara parecia furioso. - Eu não sou obrigado a ficar vendo a sua fuça todo dia e muito menos ver esse...
- ESSE O QUÊ? ANDA, FALA! ESSE O QUÊ? EXPERIMENTA FALAR ALGUMA COISA DELE NA MINHA FRENTE PRA VOCÊ VER O QUE É BOM PRA TOSSE!
- Caio, vamos embora – Bruno puxou meu braço.
- O QUE VOCÊ VAI FAZER? VAI BATER NA MINHA CARA?
- EXPERIMENTA FALAR ALGO DELE PRA VOCÊ VER! EXPERIMENTA!
- Senhores, por favor!!! – a mesma enfermeira foi reclamar do escândalo que meu pai e eu estávamos fazendo na maternidade. – Nós estamos em um hospital, mantenham o nível ou eu serei obrigada a chamar a segurança!
- Vem, Caio – Bruno me puxou de novo. – Vamos embora. Não vale a pena perder tempo com esse... LIXO!
Eu saí bufando e deixei meu pai dando o showzinho dele a sós. Ele xingou a mim, xingou o meu namorado e eu senti muita vontade de dar meia volta para dar um soco no nariz dele, mas o Bruno me segurou.
- Não vale a pena, amor! Vamos embora!
- Ai que ódio, Bruno! Ai que ódio!
- Então é esse daí que é o meu famosos sogrinho?
- O próprio! Ele mesmo. Esse desgraçado!!!
- Relaxa, coisa linda! Não adianta você ficar nervoso assim.
- Eu sei, amor! Mas é que é muito difícil!
- Eu sei, eu sei! Eu vou tentar te relaxar, tá bom?
Ele conseguiu. Quando chegamos no hotel onde eu estava hospedado, ele tirou a minha roupa, começou a me beijar e rapidinho eu consegui esquecer do meu pai. Pelo manos naquele momento.
Era dia 24 de dezembro, véspera de Natal e Bruno e eu estávamos na casa do Víctor, para ceiar com ele e sua família. Eu já me sentia parte daquela casa.
Quando o relógio se aproximou da meia noite, nós resolvemos sair para a calçada para ver os fogos de artifício e foi um show pirotécnico muito bonito, mas não tão bonito como o do Rio de Janeiro.
- Feliz Natal, meu amor!
- Feliz Natal, minha vida!
Bruno e eu nos abraçamos e ficamos agarradinhos por uns segundos. Aquele era o 4º Natal que nós passávamos juntos.
- Te amo!
- Também te amo, príncipe!
Cumprimentamos os demais e depois entramos para comer. A Dona Maria e a Susana fizeram uma comida deliciosa pra gente. Havia de tudo um pouco, mas foi na sobremesa que o Bruno extrapolou.
- Pega mais mousse, Bruno – falou Víctor.
- Ah, eu aceito! Obrigado.
- Quer ver o Bruno feliz é só dar mousse de maracujá pra ele.
- Enzo? Enzo cadê você, Enzo?
Dona Maria estava procurando pelo gato, mas ele tinha sumido.
- Enzo? Vovó tem comida pra você! Enzo?
- Ele deve estar escondido em algum canto, vó – ponderou o meu melhor amigo.
- Ele vive dormindo no cesto de roupa suja do banheiro, mãe – afirmou Susana. – Procure lá.
- Quero nem ver quando você for levar esse gato, Caio – Roberto deu risada. – Nós nos apegamos a ele!
- Ele é lindo!
Depois de 5 minutos a Dona Maria voltou com o gato no colo. Ela fez questão que ele participasse da nossa ceia e colocou comida pra ele. E não é que o gato comeu?
- Saudades da Gertrudes – suspirei.
- Quem é Gertrudes? – perguntou Susana.
- Irmã do Enzo.
- Minha nossa, mas que nome feio!!!
- Susana! – Dona Maria reclamou. – Gertrudes é o nome de minha avó!
- Ui... Me perdoe... Me perdoe, mãe... Eu esqueci!!!
Foi engraçado. A mãe do Víctor ficou roxa de vergonha. Meu melhor amigo paulistano quase morreu de tanto rir.
O tempo passou rápido naquele final de ano. Quando eu percebi, o dia de Natal já tinha acabado e já era dia 26 de dezembro, o dia em que a minha mãe e meus irmãozinhos receberiam alta.
- Amor?
- Oi, bebê?
- Eu acho que vou no hospital ver meus irmãozinhos.
- Vai sim, anjo! Eles vão receber alta hoje e depois vai ser mais difícil de você vê-los.
- É. Algo está pedindo para eu ir até o hospital, sabe?
- Então vá. Seu sexto sentido nunca falha, amor. Vá que eu fico aqui te esperando.
- Quer ir comigo?
- Não! É melhor não. Eu vou ficar aqui te esperando e vou ficar mexendo na internet. Ainda não postei as fotos do show do Jorge e Mateus!
- Nem me lembra desse dia seu cachorro!
- Desculpa – ele fez bico e eu me apaixonei de novo.
A gente se beijou e depois eu saí. Eu precisava ir até a maternidade, algo me pedia para fazer isso.
E eu fui mesmo. Fui e quando cheguei lá eles já estavam prontos para ir embora. Vi meus irmãozinhos de pertinho pela primeira vez e foi impossível não me apaixonar por eles, porque eles eram lindos!
- Oi, bebê!!! – falei e fiz carinho no rostinho de um deles. – Que coisa mais linda!
- Esse é o Davi – falou a minha mãe. – Segura ele no colo, filho!
Eu segurei mesmo. Eu queria sentir o meu irmão bem pertinho de mim. Ele não era nada pesado, era tão frágil! Dava até medo de quebrar, sei lá!
- Espero que um dia você saiba que eu escolhi o seu nome, rapazinho!
- O QUE ELE ESTÁ FAZENDO AQUI? – Edson entrou em colapso quando me viu no quarto, quando me viu com o seu filho nos meus braços.
- Não começa, pai! Não começa! – Cauã reclamou.
- VAMOS EMBORA, FÁTIMA! VAMOS EMBORA! EU DOU UM JEITO!
- O que se passa? – suspirei.
- O carro quebrou, Caio – falou Cauã. – A gente vai ter que ir de ônibus.
Ônibus? Com aqueles dois bebês indefesos? Eu não ia deixar que isso acontecesse. Mas não pela Fátima, não pelo Cauã, não pelo Edson. E sim pelo David e pelo Davi!
Os bichinhos eram muito pequenos, muito indefesos para andarem de ônibus e eu estava de carro. Eu não ia permitir que isso acontecesse. Eu ia levá-los.
- Eu levo vocês – falei depois de uns minutos.
- Não, filho... – minha mãe ficou sem graça. – Não quero te incomodar com isso...
- É, Caio – Cauã concordou. – Deixa que a gente vai de ônibus mesmo...
- Não. Eu levo. Não vou deixar esses bebês indefesos andarem de ônibus. Eles são muito pequenos pra isso. Eu levo!
- Caio...
- Eu levo, Fátima! Não se preocupa. Eu faço isso por causa deles.
Ela ficou calada e Cauã também. Acho que eles ficaram sem graça. O Edson ficou furioso e disse que não colocaria os pés no meu carro.
- Não se preocupa, Edson. Eu não quero que você coloque os pés no meu carro também. Por mim você pode ir a pé se quiser, mas comigo você não vai.
Eu olhei para o meu irmãozinho e acabei me emocionando. Ele era tão indefeso, tão pequenininho, tão frágil! Como eu ia deixar aquele ser tão inocente andar de ônibus, sendo que eu tinha carro? É claro que não!
- Já estão prontos? – perguntei. – Podemos ir?
- Sim – respondeu Cauã.
Edson saiu do quarto e mais uma vez bateu a porta na nossa cara. Minha mãe ficou irritada e saiu quase que correndo atrás dele, mas Cauã a segurou pelo braço. Ela ainda não podia fazer muitos esforços.
- Vamos embora, mãe – Cauã finalizou o assunto. – Caio, obrigado por ter se oferecido!
- Vamos logo, eu não tenho o dia todo pra ficar aqui com vocês – foi o que falei.
Nós saímos da maternidade e a minha mãe ficou felicíssima por ver de novo a luz do dia. Ela ficou muito tempo internada, sem sair daquele quarto, sem sair daquela maternidade. Eu imaginava o quanto ela deveria estar feliz.
Cauã estava andando com o David e minha mãe com o Davi. Eu fiquei incumbido de levar as malas e as coisas dos bebês. Estava tudo bem pesado.
- Caio? Esse é seu carro? – minha mãe ficou chocada.
- Sim. O que esperava? Uma Brasília?
Ela só chorou. Cauã ficou sem graça.
- Entrem.
Eles não tiveram reação.
- Entrem! Eu falei pra entrar.
Fátima entrou primeiro, mas Cauã ainda estava sem graça.
- Entra, Cauã! Vai ficar aí até que horas?
- Posso mesmo?
- Já falei que sim. Entra logo antes que eu mude de ideia.
Nossos olhos ficaram unidos por um minuto. Eu senti algo esquisito dentro de mim. O que seria?
Depois que meu irmão entrou, eu fechei a porta, fui até o lugar do motorista, entrei, sentei, coloquei o cinto, liguei o motor e dei ré. Eu tinha que dirigir maestralmente, para quebrar a cara daqueles dois.
Se em algum momento eles chegaram a pensar que eu não subiria na vida, aquele era o momento de calar a boca deles. E era isso que eu ia fazer.
- Para de chorar, mãe – Cauã falou baixinho.
Ela não falou nada. Minha mãe estava muito emocionada. Eu parei o carro em um farol vermelho e olhei pelo retrovisor. Meus olhos cruzaram rapidamente com os do Cauã, mas ele virou a cabeça. Acho que ele estava com vergonha.
Não andei nem duzentos metros e tive que abastecer. O tanque estava ficando vazio e como a maternidade era longe da minha antiga casa, talvez o etanol acabasse no meio do caminho.
- Completa pra mim?
Foi neste momento que o Bruno me ligou. Eu atendi o celular, pedi pra ele esperar, coloquei o fone de ouvido e aí sim nós pudemos conversar:
- Está me ouvindo?
- Uhum – ele respondeu. – Já está vindo pra cá?
- Não. Eu vou levar meus irmãozinhos pra casa porque o carro do Edson quebrou.
- Jura?
- Aham.
- Será que vai ser agora o momento de colocar os pingos nos is?
- Talvez.
- Não perca a pportunidade. Se for demorar, me avisa.
- Pode deixar. A gente se fala.
- Seu pai está aí também?
- Deus me livre!!!
Bruno riu.
- Arrasa, amor! Eu te amo muito!
- Não mais do que eu. Beijo!
- Outro! Te amo.
- Também.
Ele desligou e eu tirei o fone de ouvido. Notei que a minha mãe ainda estava chorando. Um de meus irmãozinhos acordou. Eu ainda não sabia quem era quem.
- Crédito ou débito?
- Débito – informei.
- Sua senha?
Coloquei a minha senha e já liguei o motor.
- Cancela a 2ª via. Obrigado!
Saí com o carro e como a avenida estava vazia, me dei ao direito de atingir ao limite de velocidade estipulado pelas placas. Assim chegaríamos mais rápido. Mas isso não aconteceu.
Demorei muito para chegar na minha antiga casa, porque mesmo sendo pós-feriado de natal, havia muito trânsito em algumas partes da cidade.
- Vira à direita... – falou Cauã.
- Eu sei. Não esqueci do caminho não.
Ele não falou mais nada. Quando eu cheguei na frente da casa deles, parei, estacionei e desliguei o motor.
- Estão entregues.
Não olhei para a casa, mas vontade não me faltou. Fiquei olhando pro outro lado da rua e revi alguns vizinhos, que na época em que eu morava lá, ainda eram crianças e naquele momento já eram adolescentes.
- Caio? Por favor, tem como abrir a porta?
- Ah, claro. Desculpem!
Eu saí, dei a volta e abri a porta do carro para meus irmãos e minha mãe saírem. Quando eles estavam na calçada, eu fechei a porta do carro e fiquei esperando algum novo acontecimento. Só aí eu olhei para a casa.
Estava igualzinha. As mesmas cores, o mesmo portão... Nada de diferente. O carro não estava na garagem.
- Você pode segurá-lo para eu abrir o portão? – perguntou o meu gêmeo.
- Claro!
Peguei o David pela primeira vez. Tão pequenininho! Ou será que era o Davi de novo? Eu não sabia se eles tinham trocado os bebês de colo!
Senti um giro de 360º no meu estômago. Era muito esquisito ficar ali na frente daquela casa depois de tanto tempo sem pisar lá dentro. Parecia até que eu estava visitando os meus sonhos, mas era a mais pura verdade.
- Caio, filho... Entra um pouco?
- Hã... Não! Obrigado.
- É, Caio! Entra!
- Não, Cauã.
Mas eu fiquei tentado a entrar sim. Aquela casa me trazia muitas recordações. Recordações boas, recordações ruins, mas sempre recordações.
Eu queria sim entrar, mas o receio falava mais alto. Eu não sabia se era a coisa certa a fazer. E tinha medo de dar tudo errado por precipitação.
Mas ao mesmo tempo, algo dentro de mim estava me empurrando para entrar. Eu não sabia o que fazer. A verdade era essa.
Eles entraram com os gêmeos e eu tive que ficar esperando alguém voltar para pegar as coisinhas dos meninos e da minha mãe. Quem apareceu foi o Cauã.
- Entra, Caio! Eu sei que você quer entrar.
Fiquei calado.
- Não acha que é a hora da gente sentar e conversar como dois adultos que somos?
Nossos olhos se cruzaram pela enésima vez naquele dia.
- Talvez, mas eu não sei...
- Pensa um pouco então. Se você quiser entrar, o portão vai estar aberto, a porta também. A nossa mãe ficaria muito feliz se você entrasse. E eu também.
Seria cômico se não fosse trágico. Era o Cauã mesmo que estava falando comigo? Era ele mesmo que estava ali na minha frente?
Parecia que sim, mas ao mesmo tempo parecia que não. Ele estava tão mudado, tão amadurecido! Em nenhum momento me ofendeu, em nenhum momento me xingou... Ele estava mudado de verdade! Pelo menos essa era a impressão que eu tinha.
Depois que ele entrou, eu voltei pro carro. Voltei pro carro e fiquei pensando na proposta que me foi feita. Seria uma excelente oportunidade entrar naquela casa para colocar tudo em pratos limpos com minha mãe e com meu irmão, mas eu ainda tinha medo.
Eu estava me acovardando perante o meu medo. Perante o medo de ser novamente ofendido, de ser novaente humilhado, de ser novamente massacrado.
Mas os tempos eram outros. Eles não iam mais fazer isso comigo. Eles já tinham notado o quanto eu tinha mudado, o quanto eu tinha amadurecido, o quanto eu tinha crescido. Eu não era mais o mesmo garotinho ingênuo de antes.
Suspirei e me espreguicei. Algo no banco de trás de meu carro acabou me chamando a atenção. Era uma fralda. A fralda de um dos meus irmãozinhos que a minha mãe ou meu irmão havia esquecido lá dentro. Eu peguei, cheirei e fiquei pensando.
Devolver ou não devolver? Era de um dos gêmeos, era de um dos meus irmãos e talvez essa fosse a única lembrança que eu pudesse ter deles à partir daquele momento.
Esse meu pensamento não era totalmente verdadeiro. Eu tinha duas opções naquele momento: ficar sem contato com os meninos, ou ficar por perto para vê-los crescendo, nem que fosse de alguma forma. E eu preferia ficar com a segunda opção.
“VAI”. Alguém ou alguma coisa gritou esse “vai” na minha cabeça e eu me enchi de coragem para entrar naquela casa, para rever o palco da minha desgraça, o ápice da minha frustração, do meu sofrimento, da minha dor. Eu tinha que pisar ali novamente, até mesmo para esquecer de vez o que tinha acontecido no passado.
Antes de sair do carro, peguei meu celular e mandei uma mensagem para todos os meus amigos do Rio, todos mesmo, informando que o dia da verdade havia chegado.
Eu estava forte na minha decisão de colocar tudo em pratos limpos. Eu precisava disso, para me sentir melhor, para me sentir mais leve e para me sentir bem.
Só faltava isso para eu ser feliz por completo. Eu já tinha tudo o que queria, mas não era totalmente feliz por causa da briga com meus familiares.
Para que adiar mais aquele momento? Eu já estava adiando há 3 meses e havia chegado a hora de colocar tudo na mesa. Era a hora de expor o quanto eu tinha sofrido, o quanto eu tinha sido pisado na vida por culpa deles, mas também o quanto eu cresci, o quanto eu venci na vida.
Nem deu tempo eu sair do carro e o povo já estava me ligando. A primeira que ligou foi a Alexia. Eu atendi todas as ligações. Todo mundo me desejou sorte e pediu para eu fazer as coisas com calma. Eu ia tentar. O último que me ligou foi meu namorado:
- Cuidado com o que você vai falar, porque a sua mãe está recém-operada.
- Eu vou falar tudo o que está preso na minha garganta, amor. Depois eu te conto tudo detalhadamente.
- Quero saber de tudo mesmo! Boa sorte, eu vou estar torcendo por você.
- Obrigado! Eu te amo.
Saber que eu tinha o apoio de meus amigos e de meu namorado era tudo pra mim, mas mesmo que eles não me apoiassem, eu iria do mesmo jeito.
Decidido, abri a porta do carro, saí e depois travei o automóvel para ninguém roubá-lo. Depois disso, fui até o portão e coloquei a mão direita no ferro. Parecia que a minha mão estava ardendo, só em segurá-lo.
Respirei fundo e entrei. Entrei com o pé direito, para ter sorte à partir daquele momento. Entrei e me senti esquisito, me senti estranho. Era muito esquisito voltar ali depois de tantos anos.
Meu celular tocou. Era o Rodrigo. De todos, ele foi o único que não tinha ligado ou respondido a minha mensagem até aquele momento.
- Jura que você vai fazer isso, Cacs?
- Juro, Digão. Chegou a hora. Eu já entrei na garagem.
- E como se sente?
- Estranho. Essa é que é a verdade.
- Boa sorte então! Fala tudo o que você tem pra falar, mas também ouça. É importante ouvir a versão deles também.
O Vinícius tinha dito a mesma coisa.
- Farei isso. Obrigado pela força.
- Te amo! Estou com saudades!
- Eu também. Beijo.
- Outro!
Cheguei na porta da sala e coloquei a mão na maçaneta. De novo senti a minha pele arder. Por mais que eu quisesse aquele embate, algo também pedia para eu sair dali correndo. Era o meu coração falando. Naquele momento eu resolvi dar ouvidos à razão. E me dei bem.
Abri a porta e 7 anos e meio depois me deparei de novo com a sala de minha antiga casa.
Infelizmente eu era – e sou – detalhista demais e só por esse motivo, meus olhos foram passando de canto em canto, de objeto por objeto, de móvel por móvel e eu percebi que tudo estava exatamente igual a época em que morava ali.
Os mesmos móveis, os mesmos quadros, a mesma cortina, o mesmo tapete e a mesma decoração. Seria apenas uma mera coincidência ou tudo permaneceu assim propositalmente durante aquele tempo todo? Não poderia ser possível.
Resolvi entrar e percebi que os dois meninos estavam chorando no piso superior. Provavelmente o Cauã e a minha mãe estavam lá cuidando deles. Eu entrei.
Entrei, fechei a porta e continuei olhando tudo. Não era possível que eles não tivessem feito nenhuma modificação naquele tempo. Ou será que a minha memória estava me traindo?
Não, ela não estava! Eu tinha certeza que tudo estava igual, da mesma forma que eu tinha certeza que iria morrer um dia. Não havia nada de diferente, pelo menos na sala.
Me aproximei da escada e foi impossível não lembrar que foi ali, naquele último degrau que eu caí e torci o pé. Culpa do Edson. Culpa daquele desgraçado.
“Enquanto eu descia as escadas a dor só fez aumentar. Quando cheguei no último degrau, virei o pé e caí deitado no chão.
- LEVANTA DAÍ – meu pai ordenou. –LEVANTA E SOME DAQUI... DESAPARECE DA MINHA CASA... NÃO QUERO TE VER MAIS NENHUM SEGUNDO DEBAIXO DESSE TETO...
Eu sentei e tentei ficar de pé, mas meu tornozelo estava doendo demais e eu não consegui apoiar o pé no chão.”.
Só neste momento as lembranças ruins começaram a tomar conta da minha mente. Era impossível ficar ali e não lembrar de tudo, não reviver tudo. A dor voltou depois de vários e vários anos. Foi difícil.
Comecei a subir a escada com muita lentidão. As minhas pernas estavam um pouco travadas e eu ainda sentia um pouco de medo, além do nó que existia na minha garganta e o gelo que eu sentia no meu estômago. Era tudo muito esquisito, muito diferente, mas ao mesmo tempo muito igual.
Eu fiquei fora 7 anos e meio, mas parecia que tinha saído daquela casa no dia anterior, porque estava tudo igual. Tudo exatamente igual. E pra mim isso era estranho demais.
Quando eu cheguei no último degrau e entrei no corredor que dava acesso aos quartos e ao banheiro, percebi que havia uma diferença: uma porta nova foi aberta e isso me fez crer que houve uma reforma naquele ambiente.
Continuei andando e notei que o chão estava incrivelmente limpo e cheiroso. O cheirinho de limpeza estava me acompanhando desde a sala. Quem teria limpado a casa? Meu irmão?
As vozes estavam vindo da porta que anteriormente não existia. Ali deveria ser o quarto dos bebês. E era mesmo.
Bati duas vezes na porta, bem de leve e fiquei esperando alguém abrí-la. Quem o fez foi o Cauã. Ele ficou sério quando me viu.
- Filho... – minha mãe ficou muito feliz ao me ver ali. – Ai não acredito que você entrou!
- Vocês... Esqueceram... Isso...
Eu entreguei a fralda pro Cauã e ele a segurou, mas depois voltou a me olhar. Por que ele estava me olhando tanto naquele dia? Será que queria mesmo falar comigo?
- Entra, Caio! Nós estamos trocando os gêmeos – falou o meu próprio gêmeo.
Eu entrei, mas fiquei retraído. Eu não estava me sentindo muito à vontade naquele ambiente, embora estivesse me sentindo encantado com a beleza daquele quarto.
Era tudo azul e verde, até os móveis tinham detalhes nessas cores. Eu me lembrei do quartinho do Nícolas, era bem semelhante. Na parede, estava escrito o nome dos dois e havia desenhos de bebês engatinhando. Tudo muito fofo, tudo muito organizado, tudo muito caprichado.
- Gostou do quarto? – perguntou minha mãe.
- Gostei... Mas como ele foi feito?
- Aqui era o escritório de seu pai. Não lembra?
- Ah... – de repente eu tive um clique. – É verdade, mas a porta não era aqui.
- Não! A porta era por dentro do meu quarto – explicou a minha mãe. – Aí a gente resolveu colocar aqui pra fora.
- Ficou tudo muito bom.
- Que bom que gostou. Eu já volto!
A Fátima estava bem mais à vontade comigo. Ela até parecia a mesma de antes! Pena que não era bem assim que as coisas funcionavam.
- Vem ver eles dormindo – Cauã estava sentado numa poltrona, com o queixo apoiado no bercinho de nossos irmãos. Aos poucos eu fui me aproximando.
David e Davi iam dividir o mesmo berço, da mesma forma que Cauã e eu fizemos, até os 2 anos de idade. Isso é o que a minha mãe falava, nós não nos lembramos disso.
Eu fiquei olhando os dois gêmeos e percebi que eles eram iguaizinhos. Era a primeira vez que eu os via com mais calma, que eu analisava os traços de seus rostinhos angelicais.
Os meninos eram muito brancos, assim como eu e meu irmão. Tinham o cabelo bem ralinho e bem clarinho e os olhinhos castanhos. Os narizes eram quase imperceptíveis e as bocas então nem se fala. Eles eram lindos!
Mas sem mais nem menos eles começaram a chorar. Os dois abriram o berreiro ao mesmo tempo e o Cauã e eu tivemos que segurá-los para ver se eles se acalmavam. Eu não sei quem eu peguei no colo, pra falar a verdade.
- Quem é esse daqui? – perguntei.
- Eu ia te perguntar isso agora!
Eu olhei pro Cauã e em seguida nós dois rimos da situação. Nós não sabíamos quem era quem, porque aparentemente os nenéns não tinham nada que os diferenciasse.
Eu fiquei ninando um de meus irmãos até ele parar de chorar, o que não custou a acontecer. Os dois se calaram no mesmo momento e acho que eles só queriam colo.
Minha mãe voltou pro quarto e quando viu o Cauã e eu segurando os nossos irmãos, acabou caindo no choro. Qual mãe não se emocionaria vendo os quatro filhos juntos?
- Eu nunca vou cansar de agradecer a Deus por Ele ter me proporcionado esse momento! Os meus quatro filhos juntos!!!
Eu fiquei pensando. Eu também seria grato por aquele momento. Quando em minha vida no Rio de Janeiro eu imaginei que um dia iria voltar para casa, iria ficar com a minha família e que iria ter dois irmãozinhos novos? Nunca pensei numa coisa dessas.
- Caio? – ela secou as lágrimas.
- Hum? – eu voltei a si e olhei pra ela.
- Quer dar uma olhada no seu quarto?
No meu quarto? Foi isso mesmo que eu ouvi?
- No meu... Quarto?
- Sim! Ele está lá do mesmo jeito que você deixou.
Do mesmo jeito que eu deixei? Não pude deixar de ficar surpreso com essa revelação. Eu jurava que meu pai já havia destruído aquele quarto há muito tempo!
- Aqui está a chave – ela esticou o braço.
Antes de pegá-la, eu coloquei meu irmão no berço. Eu queria sim ver meu quarto e duvidava que estivesse tudo do jeito que eu deixei. Isso seria impossível.
Depois que coloquei o menino no berço, eu fui até a minha mãe e peguei a chave que estava na mão dela. Nossas peles tocaram e ela ficou me olhando por um longo período.
- Vai lá. Pode ficar à vontade. Nós não vamos te atrapalhar.
Engoli em seco. Eu sabia que talvez aquele fosse o momento mais triste daquele dia. Eu sabia que voltar pro meu quarto depois de ter sido brutalmente escurraçado dele não seria nada bom, mas eu precisava passar por aquele momento.
Caminhei pelo corredor e quando cheguei diante da porta do meu antigo dormitório, coloquei a chave na fechadura, a destranquei e depois a abri com delicadeza.
Foi impossível evitar o choque. O que a Fátima disse era verdade! Estava tudo exatamente igual, tudo igualzinho mesmo! Até a roupa de cama era a mesma: o meu edredom favorito. Eu me lembrei de todos os detalhes, de todos os mínimos detalhes daquele lugar.
Entrei, já com lágrimas nos olhos. Eu estava chocado, mas ao mesmo tempo, emocionado.
Eu olhei parede por parede, móvel por móvel, foto por foto e objeto por objeto. Tudo igual, tudo igual e muito bem arrumado. Não tinha nada fora do lugar e não tinha um resquício de poeira em nenhum canto.
Foi até a cômoda e abri a primeira gaveta. Os meus álbuns de fotos, os meus álbuns de figurinhas e meus cadernos da escola ainda estavam lá. Intactos, mesmo depois de tanto tempo ter passado.
Olhei pra cama e resolvi sentar. Não era possível que ela tivesse deixado a mesma roupa de cama durante 7 anos e 6 meses. Era? Ela deixou, mas tirou pra lavar, porque estava limpo. Limpo e com cheiro de amaciante. A cama estava muito bem forrada, muito bem arrumada.
Passei a mão no edredom e foi impossível evitar o choro. Eu estava emocionado demais. Foi ali, naquele quarto onde tudo começou. Foi ali naquele quarto onde eu fui espancado, onde eu fui xingado, onde eu fui humilhado.
“- RESPONDE!
Fiquei calado. Não consegui responder nada.
- EU FALEI PRA VOCÊ RESPONDER!!!
O tapa que ele deu no meu rosto me fez cair da cadeira giratória.
- Pai...”.
Foi ali naquele quarto onde eu passei os primeiros anos de minha vida. Segundo a minha mãe, eu ganhei aquele quarto quando fiz 2 aninhos de idade. Foi nessa época que me separei de Cauã e foi nessa época em que passei a dormir sozinho, em um quarto só meu.
Era ali, naquele quarto, onde eu brincava, onde eu jogava vídeo-game, onde eu estudava, onde lia, onde pensava, onde rezava, onde aprontava...
Quantas e quantas vezes a minha mãe me deixou de castigo naquele quarto? Quantas e quantas vezes eu fui obrigado a ficar lá, sem sair por causa de alguma travessura?
Foi ali também que eu vivi os primeiros anos de minha adolescência, mas esse ciclo não pôde ser finalizado naquele quarto. Felizmente, ou infelizmente? Eu não sabia dizer.
Eu tinha crescido, mas as lembranças tinham me acompanhado. Eu era adulto, mas ainda lembrava da época que era criança e da época em que era adolescente. Eu fui feliz ali naquele lugar, mas também fui muito triste.
Contudo, a tristeza só durou alguns minutos, porque eu fui obrigado a abandonar aquele canto. Eu fui obrigado a sair daquele quarto, a sair daquela casa para explorar o desconhecido, para explorar o novo.
Olhei pro computador e lembrei que foi através dele que a minha desgraça começou. Se eu não tivesse entrado naquela página de pornografia gay no Orkut, eu não teria sido expulso de casa.
Fui até ele e resolvi ligá-lo. Pensei que depois de todo aquele tempo o computador não fosse ligar, mas ele ligou. Ligou e funcionou perfeitamente.
Meus arquivos ainda estavam na área de trabalho. Minhas pastas, meu antivírus, minhas músicas, meus jogos. Tudo.
Eu suspirei. Será que eles não tinham mexido em nada naquele tempo todo? Será que o Cauã não tinha fuçado naquele computador nem sequer por curiosidade?
Eu entrei na internet e ela estava funcionando perfeitamente também. Incrível. Tudo era muito inacreditável. Eu abri o MSN e tive que esperar este se atualizar, porque fazia muito tempo que ele não era aberto. Quando isso aconteceu, chamei o Bruno e contei o que estava acontecendo, incrédulo. Assim ele ficou.
Abri a webcam e comecei a falar com meu namorado. Mostrei meu antigo quarto pra ele e nós ficamos conversando por um tempinho, até a porta ser aberta com um chute e o meu pai entrar enfurecido:
- EU POSSO TE TOLERAR NA RUA, DESGRAÇADO, MAS AQUI EM CASA EU NÃO TE ACEITO!
Eu vi a mão direita do meu pai vindo na direção do lado esquerdo do meu rosto e a mão esquerda vindo na direção do lado direito, mas antes que ele tocasse a minha pele, eu bloqueei os tapas, levantei e gritei em alto e bom som:
- SE ENCOSTAR UM DEDO EM MIM EU VOU NA DELEGACIA E TE DENUNCIO POR TENTATIVA DE HOMICÍDIO, SEU FILHO DA PUTA!!!
Essa foi a faísca que faltou para eu explodir de vez. Quem o meu pai pensava que era para tentar colocar a mão em cima de mim? Não! Isso ele não ia fazer. De jeito nenhum!
- ANDA SEU FILHO DA PUTA!!! – continuei. – ANDA!!! VOCÊ NÃO É O MACHÃO? COLOCA UM DEDO EM CIMA DE MIM! COLOCA!!! COLOCA QUE EU SAIO DAQUI DIRETO PRA POLÍCIA PRA TE DENUNCIAR POR TENTATIVA DE HOMICÍDIO, SEU VERME! SEU NOJENTO!!!
Ele bufou e foi ficando vermelho aos poucos. eu tambpem bufei e senti todo o meu corpo tremendo. Eu tremia da cabeça aos pés, mas não era de medo. Era de ódio. Muito ódio.
- SOME DA MINHA CASA, SEU VEADO NOJENTO!
- O ÚNICO NOJENTO AQUI É VOCÊ, SEU VELHO PRECONCEITUOSO, SEU HOMOFÓBICO, SEU RIDÍCULO! O QUE VOCÊ TÁ PENSANDO? QUE EU CONTINUO COM 16 ANOS? QUE EU VOU ACEITAR VOCÊ ME ESPANCAR COMO FEZ DA OUTRA VEZ?
- EU DEVERIA TER TE MATADO, SEU FILHO DA PUTA!
- POR QUE NÃO TENTA ME MATAR AGORA? VEM, EDSON! VEM PRA BRIGA... TÁ COM MEDO DE LEVAR UMA SURRA?
- PAREM COM ISSO, PELO AMOR DE DEUS!!! – só nesse momento eu percebi que a minha mãe e o meu irmão estavam no meu quarto. Ambos estavam brancos e com medo.
- SAI JÁ DAQUI, MOLEQUE! EU JÁ FALEI QUE NÃO TE ACEITO AQUI! SOME, VAZA, VAI CORRER ATRÁS DE SEUS MACHOS!
- MEUS MACHOS UMA VÍRGULA! ME RESPEITA PORQUE EU NÃO SOU DA SUA LAIA, SEU NOJENTO! EU NÃO SOU ANIMAL PRA FICAR CORRENDO ATRÁS DE MACHO! O ÚNICO ANIMAL AQUI É VOCÊ, SÃO VOCÊS!
- EU NÃO VOU PERMITIR QUE UM VEADINHO FIQUE DEBAIXO DO MESMO TETO QUE EU! NÃO VOU!
- VEADINHO NÃO! SOU GAY! NÃO SOU VEADINHO. ME RESPEITA, PORQUE EU NÃO SOU MAIS O MESMO TONTO QUE FOI EXPULSO DE CASA QUANDO TINHA 16 ANOS! AGORA QUEM DITA AS REGRAS AQUI SOU EU!
Meu pai deu risada e ficou zombando de minha cara. Meu irmão ainda estava branco feito cal e a minha mãe só fez chorar.
- E você acha mesmo que você manda em alguma coisa nessa casa?
- NESSA CASA NÃO, PORQUE EU NÃO QUERO MANDAR EM UM NINHO DE COBRAS COMO ESSE, MAS NA MINHA VIDA EU MANDO! EU NÃO ACEITO QUE VOCÊ ME HUMILHE DESSE JEITO! QUEM É VOCÊ PRA PENSAR EM ME XINGAR? ME DIZ?
Ele ficou calado. Era o que eu queria.
A hora de soltar os cachorros em cima deles tinha chegado. Eu não estava medindo o limite da minha raiva e estava de uma vez por todas disposto a liberar toda a raiva que eu sentia daquele homem.
- A minha vida estava ótima até você aparecer, seu nojento!
- SE EU APARECI AQUI, DESGRAÇADO, FOI PORQUE A SUA ESPOSA PEDIU QUE EU VIESSE. VOCÊ ESTÁ SABENDO DISSO POR ACASO?
Ele ficou calado e olhou para a mulher.
- Isso é verdade, Fátima?
- É! É verdade sim, por que? Vai gritar comigo também?
- EU DISSE QUE NÃO QUERIA ELE POR PERTO, FÁTIMA!
- Você não quer, mas eu quero! Eu já perdi tempo demais longe do meu filho por sua causa.
- SEU FILHO MESMO, PORQUE MEU FILHO ELE NÃO É! EU NÃO EDUQUEI ESSE INFELIZ PRA ELE VIRAR O QUE VIROU!
- PODE FICAR TRANQUILO, SEU VELHO NOJENTO! EU NÃO SOU SEU FILHO! EU TENHO NOJO DE VOCÊ... NOJO, ASCO! VOCÊ É O PIOR SER HUMANO QUE EXISTE NA FACE DESSA TERRA!
- CALA A BOCA! CALA A BOCA SEU MOLEQUE INSOLENTE!
- VAI ME BATER? VEM BATER ENTÃO, VEM! ESTOU AQUI TE ESPERANDO... VEM BATER, EDSON... VEM...
Eu provoquei mesmo. Provoquei e provoquei bonito! Ele ia saber naquele momento quem eu era!
- VOCÊ NÃO É O MACHÃO? NÃO É O HOMENZARRÃO? NÃO É O MACHO ALPHA? ENTÃO POR QUE NÃO VEM AQUI DAR UM TAPA NA MINHA CARA? POR QUE NÃO VEM CHUTAR O MEU ESTÔMAGO DE NOVO? POR QUE NÃO VEM ME EXPULSAR DE SUA CASA? VEM!
Ele não foi e ficou sem reação. É claro que ele não ia fazer nada. Ele percebeu que eu não estava brincando com aquele assunto.
- TÁ COM MEDINHO, EDSON? TÁ COM MEDINHO DE IR PRA CADEIA? DE SER DENUNCIADO? PORQUE AGORA EU POSSO FAZER ISSO! HÁ 7 ANOS ATRÁS EU NÃO FIZ, MAS DEVERIA TER FEITO! FUI BURRO EM NÃO IR NUM HOSPITAL, EM NÃO IR NUMA DELEGACIA PRA TE DENUNCIAR. SERIA UM PRAZER IMENSURÁVEL TE VER DETRÁS DAS GRADES!
- Você não seria capaz de fazer isso, moleque. Você não era inteligente o suficiente pra fazer isso. Eu sabia que você não ia fazer nada, você não era louco!
- EU NÃO FIZ NADA, MAS FOI PRA POUPAR A MINHA CARA, SEU DESGRAÇADO, NÃO POR VOCÊ. E SE NÃO ACHA QUE EU SOU INTELIGENTE, POR QUE EU TENHO UM CARRO ENTÃO? POR QUE EU DEI A VOLTA POR CIMA? HUM? ME EXPLICA!
- VOCÊ SE ACHA A ÚLTIMA BOLACHA DO PACOTE? É ISSO?
- NÃO, NÃO ME ACHO NADA! EU NÃO SOU MELHOR DO QUE NINGUÉM, MAS EU TENHO O MEU VALOR E ISSO VOCÊ NÃO VAI TIRAR!
- VOCÊ DEVE TER DADO MUITO ESSA BUNDA PRA COMPRAR ESSE CARRO!
Eu ri. Eu ri e ri muito. Se ele queria me estressar, me provocar, ele estava conseguindo.
- NÃO, QUERIDO! – fiz questão de chamá-lo assim, pra parecer bem falso. – EU CONQUISTEI MEU CARRO COM O MEU DINHEIRO, COM O MEU SUOR, COM O MEU TRABALHO!!!
- Ah, é? E o que você andou fazendo por aí? Limpando privada de bar? Não, não... Deve ter sido com tráfico de drogas...
- EU NÃO SOU DA SUA LAIA, MEU FILHO! EU TRABALHEI, EU ESTUDEI, EU SOU ALGUEM NA VIDA!!! OU VOCÊ PENSOU, VOCÊS PENSARAM, QUE EU FIQUEI ME LAMENTANDO POR VOCÊ TER ME BOTADO PRA FORA DAQUI?
- VOCÊ ACHA QUE EU IA FICAR PENSANDO EM VOCÊ. INFELIZ? EU TENHO PRIORIDADES NA MINHA VIDA E VOCÊ NÃO ESTÁ INCLUSO NELAS!
- COMO SE VOCÊ ESTIVESSE INCLUÍDO NAS MINHAS, COMO SE VOCÊS ESTIVESSEM inCLUÍDOS NAS MINHAS! SE LIGA!!!
A única coisa que a minha mãe fazia era chorar. Já meu irmão, este não fazia nada. Cauã estava paralisado feito a Estátua da Liberdade.
Aos poucos eu já estava me sentindo aliviado. Aos poucos eu soltei tudo o que estava preso na minha garganta e aos poucos eu fui me sentindo mais leve, mais tranquilo. Eu precisava daquele momento.
- Eu pensava que você tinha morrido por AIDS, seu condenado.
- PRA SUA INFORMAÇÃO EU NÃO TENHO AIDS. E VOCÊ É TÃO BURRO QUE NEM SABE QUA A AIDS DEMORA ANOS PRA MATAR UMA PESSOA. MAS CUIDADO COM A SUA LÍNGUA, VIU? UM DIA VOCÊ PODE SER INFECTADO.
- EU NÃO SOU DA SUA LAIA! EU NÃO PEGO AIDS!
- Você é tão burro, Edson, tão retardado que pensa que só os gays pegam AIDS! – eu fiquei mais calmo depois da gargalhada que soltei. – Em que mundo você vive? Em que século você vive?
Meu pai ficou calado.
- Deve ser muito difícil para vocês perceberem que eu cresci na vida, não é?
Silêncio.
- Deve ser muito difícil para vocês saberem que eu sobrevivi depois de toda a humilhação que eu sofri aqui nessa casa!
Eles nem piscaram.
- Deve ser muito difícil para vocês três constatarem que eu estou muito melhor do que vocês poderiam sonhar. Que eu voltei formado, pós-graduado, com um carro 0 comprado às custas do meu suor e ganhando... Por mês!
Eu precisava soltar tudo. Não tinha jeito.
- Deve ser péssimo para você, Cauã, perceber que eu dei a volta por cima sozinho, sem precisar da ajuda de vocês pra nada! Deve ser muito difícil pra você, FÁTIMA, perceber que eu sobrevivi sem a mamãezinha que não fez PORRA NENHUMA para me salvar das garras desse... BOSTA DE VACA!!!
- BOSTA DE VACA É VOCÊ, IMUNDO!
- Você tá pensando que eu ainda sou o mesmo garotinho de antes, Edson? Você pensou que eu não ia voltar bem de vida? Que eu ia morrer de fome por acaso?
- Adoraria que isso tivesse acontecido.
- Mas não aconteceu! E sabe por que não aconteceu? Porque eu fui à luta! Eu não morri porque você me expulsou de casa, muito pelo contrário!!! Foi à partir desse momento que eu comecei a viver!!!
- Eu deveria ter feito isso muito tempo antes, seu moleque...
- Eu é que deveria ter saído há muito mais tempo! Porque vocês são qualquer coisa, menos família!
- Filho... – minha mãe se pronunciou pela primeira vez. – Me perdoa...
- Perdoar? Não, Fátima! Desculpa, mas eu não posso te perdoar. Eu te liguei, te pedi um abraço, te pedi um carinho e você não foi capaz de dar. Você me virou as costas como esse daqui fez. Eu não vou perdoar. Você só lembrou que eu existo, FÁTIMA, quando a morte bateu na cabeceira da sua cama naquele hospital. Aí você lembrou que eu existo.
Ela soluçou.
- Você não foi mulher para se colocar na frente desse filho da puta quando ele começou a me bater. Você não foi mulher para tentar segurar esse monstro. Você não foi MÃE para tentar defender a sua cria! Para que eu vou te perdoar? Não, não tem perdão. Eu não sou idiota, FÁTIMA!
Ela intensificou o choro.
- Não adianta chorar, Fátima! Eu posso estar sendo orgulhoso demais, mas eu não posso simplesmente passar uma borracha em tudo o que aconteceu! Eu fui expulso de casa como se eu fosse um objeto velho que não se usa mais. E você não fez nada para impedir, Fátima! Não fez nada!!!
- Caio... Ela não pode se emocionar...
- Cala a boca, Cauã! Cala a boca que o papo ainda não chegou em você. E não vem com essa que ela não pode se emocionar porque ela não está mais correndo risco de vida, se é que ela correu alguma vez.
- MOLEQUE DESGRAÇADO! A MINHA VONTADE É...
- Quebrar a minha cara? Então vem, Edson! Vem... Vem bater se você for homem!
- NÃO. EU NÃO VOU! EU NÃO VOU MAIS SUJAR AS MINHAS MÃOS COM VOCÊ!
- COVAAAAAAAAAAAAAARDE!!! – eu dei um murro na parede. – É ISSO QUE VOCÊ É, UM COVARDE! NÃO TEM CORAGEM DE COLOCAR UM DEDO EM MIM PORQUE SABE QUE EU SERIA CAPAZ DE QUALQUER COISA PRA TE VER ATRÁS DAS GRADES!!! VOCÊ É UM COVARDE, EDSON! É ISSO QUE VOCÊ É!
- Cala a boca, moleque... Cala a boca...
- NÃO CALO! EU FIQUEi COM TUDO ISSO DAQUI PRESO HÁ 7 ANOS! 7 ANOS, NÃO SÃO NEM 7 MINUTOS, NEM 7 HORAS, NEM 7 DIAS, NEM 7 SEMANAS E NEM 7 MESES. SÃO 7 ANOS! 7 ANOS QUE EU VIVI LONGE DE VOCÊS E 7 ANOS QUE EU TENHO ISSO PRESO NA MINHA GARGANTA. EU NÃO VOU ME CALAR! VOCÊS SÃO UNS... INSENSÍVEIS!
- Vai chorar, veadinho?
- Chorar? Chorar por sua causa? Nem se você estivesse morto! Nem se você fosse morto com cinquenta tiros eu choraria. E sabe por que? Porque você NÃO merece o meu choro. Você NÃO merece o meu ódio. Você NÃO merece a minha pena. Você só mrece o meu DESPREZO, porque você é desprezível!
- Pelo menos eu sou homem!
- EU TAMBÉM SOU HOMEM, MUITO MAIS HOMEM DO QUE VOCÊ, SEU DESGRAÇADO!
Eu voltei a tremer de raiva.
- EU SOU MUITO MAIS HOMEM QUE VOCÊ PORQUE EU NUNCA FARIA COM UM FILHO O QUE VOCÊ FEZ COMIGO!!! NUNCA FARIA O QUE VOCÊ FEZ COMIGO NEM COM MEU PIOR INIMIGO!!!
Ele ficou calado nesse momento. Apenas bufou de raiva e ficou andando de um lado pro outro.
- Caio...
- Cala a boca Cauã! Não vem se meter aonde você não é chamado!
- Tomara que você morra, moleque! Tomara que você morra, porque você é mais sujo do que uma privada de estação de trem. Você é mais nojento que uma fossa, mais fedido que bosta de cavalo! Eu deveria ter te jogado numa lixeira quando você nasceu, se soubesse que você era assim!
Pra que ele foi falar isso? Eu me revoltei tanto, fiquei tão puto com o que eu acabara de ouvir, que o meu ódio falou mais alto. Eu uni todas as forças que eu tinha naquele momento e dei um soco na cara do meu pai.
- RÃ! – Fátima abriu a boca e ficou estática com o que acabara de presenciar.
Cauã continuou paralisado, mas ficou com os olhos arregalados e o Bruno estava chorando. No meio daquela briga eu nem me lembrei que o pobrezinho estava lá, ouvindo e assistindo tudo.
- LAVE... A... SUA... BOCA... ANTES... DE... FALAR... DE... MIM.
- Eu só vou dizer que você é homem se você bater de novo na minha cara!!!
Mas ele nem precisou pedir de novo. Eu fui com a mão direita em direção ao rosto do Edson, mas ele segurou e só por causa disso eu dei um tapa nele com a mão esquerda.
- E AGORA? VAI FALAR QUE EU NÃO SOU HOMEM DE NOVO? ANDA, FALA! FALA QUE EU NÃO SOU HOMEM! FALA, EDSON!
- SEU MALDITO!!! – ele tentou me espancar, mas eu não deixei. Não deixei e dei mais um soco na cara dele, mas esse foi com mais força ainda. Tanta força que pensei ter quebrado o nariz dele.
- O ÚNICO NOJENTO AQUI É VOCÊ! SE EU FEDO A MERDA DE CAVALO, VOCÊ FEDE A CARNIÇA, PORQUE VOCÊ É PODRE!
Antes que ele pudesse reagir, eu acabei dando mais um soco no rosto dele e dessa vez deve ter doído pra valer, porque ele acabou reclamando.
O rosto dele estava sangrando, mas eu não liguei. Edson merecia tudo aquilo. Mesmo sendo meu pai, ele merecia aquela lição da minha parte.
- PARA COM ISSO, CAIO! ELE É SEU PAI! – Fátima ficou escandalizada com o que estava vendo.
- PAI? PAAAAAAAAAAAAAAAAI? COMO É QUE É? ESSE INFELIZ É TUDO, MENOS MEU PAI!!!
Edson tirou a mão do rosto e estalou o pescoço. O rosto dele estava muito marcado e isso fez com que eu lavasse a minha alma.
- VOCÊ NÃO É PAI, EDSON, VOCÊ É UM MONSTRO!!!
Ele não revidou.
- E VOCÊ FÁTIMA, NÃO É MÃE, É UMA COBRA!!!
Nesse momento ela urrou de tanto chorar.
- E VOCÊ NÃO É IRMÃO, CAUÃ, VOCÊ É UM INIMIGO!!!
Eu falei tão alto que os bebês começaram a chorar. Cauã saiu correndo do quarto e eu não sei se era para acodir aos nossos irmãos, para chorar ou para simplesmente desaparecer da minha frente.
Parece que nesse momento eu tirei uma tonelada das minhas costas. Eu estava me sentindo leve, bem leve mesmo. Leve e feliz.
- Eu vou deixar uma coisa bem clara – falei depois de alguns minutos. – Se é que vocês ainda não perceberam, eu não sou mais o mesmo idiota de 7 anos atrás. O meu limite começa onde termina o de vocês. Eu vim morar em São Paulo sim, mas não vim por causa de vocês. Eu vim por motivos particulares e eles vão continuar sendo particulares.
- Deve ter voltado pra dar o rabo pra São Paulo inteira!!!
- Edson, você não é um monstro não. Você é o verdadeiro capeta! Eu tenho dó desses pobres meninos que acabaram de nascer. Tenho dó deles serem criados nessa família preconceituosa.
- Meus filhos serão educados para serem homens como eu e o Cauã, não para ser igual a você!!!
- Primeiro: a minha educação foi a mesma da do Cauã. Segundo: eu não virei gay porque quis, eu nasci assim, sou assim e vou morrer assim e sabe de uma coisa? EU TENHO ORGULHO DISSO!
- Claro que tem! Você deve dar muito essa bunda...
- E sabe por que eu tenho orgulho disso? Porque eu me tornei um homem de bem e fiz isso com as minhas próprias pernas! Eu não deixo de ser homem porque sou gay e não sou menos que ninguém por causa disso.
E de repente eu senti um “clique” na minha cabeça.
- E acho que agora eu entendo porque você ficou grávida de gêmeos e porque são dois meninos, Fátima! Se você não tomar cuidado com a sua língua ferina, Edson, é bem capaz que tudo se repita daqui há alguns anos!
- O quê? JAMAIS! Esses dois vão ser homens igual a mim e igual ao MEU FILHO CAUÃ.
- Pois tomara que os dois sejam gays e sejam ¼ do que eu sou hoje em dia! Tenho orgulho de ser quem eu sou!!!
- Se você tem tanto orgulho assim da sua vida, por que voltou? Por que não ficou onde estava? Por que teve que voltar pra encher o meu saco? Pra me fazer passar vergonha?
- Te fazer passar vergonha? Quem me faz passar vergonha aqui é você! Eu sou gay, mas não sou um monstro como você! Sou melhor que muito hetero por aí e isso é fato!
- Volta pra sua cidade, moleque! Vai voltar a lavar privada pra comprar comida.
- Lavar privada? Posso até fazer isso, mas se for com a sua cara! Não preciso disso pra sobreviver, Edson!!! Eu trabalho e ganho muito bem, diga-se de passagem!!! Deus é maravilhoso na minha vida!
- É mesmo? E quanto você ganha? Dois salários mínimos?
Eu ri. Dois salários mínimos... Eu teria orgulho se fosse esse valor, mas era mais que isso – não quero me gabar, que fique claro.
- Você é burro, surdo ou as duas coisas? É tão sonso, é tão lesado, tão encéfalo que nem percebeu que eu já disse quanto ganho,
Informei o valor de quanto eu iria ganhar na nova empresa e a minha mãe ficou assustada!
- Sério, nojentinho? – meu pai debochou. – Tá saindo com o dono da empresa?
- Não, querido! Eu sou casado e muito bem casado. Não preciso sair com ninguém pra conseguir ganhar bem. Pra isso eu estudei e fiz pós-graduação.
- E você é pós-graduado em quê? Em chupar pica?
Pronto. Esse foi o pico da nossa discussão. Eu dei mais um soco na cara daquele verme e só depois disso resolvi sair daquela casa, onde eu tinha passado tantos momentos felizes, mas também tantos momentos tristes.
- Da próxima vez que você encostar a mão na minha cara...
- Vai fazer o quê? – provoquei. – Vai me denunciar também? Denuncia! É a sua palavra contra a minha e eu quero ver quem vai ganhar essa batalha.
Desliguei o computador tirando-o da tomada e depois disso eu saí do quarto, desci as escadas e continuei ouvindo ele gritar lá de cima:
- SOME! VAI EMBORA E NÃO VOLTA NUNCA MAIS SEU VERME FEDORENTO!!!
- PODE DEIXAR QUE EU NÃO PRETENDO VIR AQUI NUNCA MAIS.
Bati a porta quando saí e me senti extremamente aliviado quando coloquei os pés na calçada.
Um milhão de quilos mais leve, um milhão de toneladas a menos nas minhas costas. Eu estava com a alma lavada, com o corpo leve, com a garganta livre. Eu tinha falado tudo o que queria falar, eu tinha dito tudo o que queria dizer. Só faltava falar umas verdades pro Cauã, mas isso eu faria depois...
O importante mesmo foi soltar os cachorros em cima do meu pai e acima de tudo, dar aqueles socos na cara dele.
Sei que muitos podem achar isso o cúmulo, que podem falar que é pecado e blá, blá, blá, mas eu não me importo.
Se for pecado, eu vou levar esse pecado pra sempre, mas vou levar com felicidade, porque hoje em dia eu sou muito bem resolvido nessa questão, justamente por esses tapaz que dei na cara daquele capeta.
Pronto. Eu tinha falado o que queria falar, mas ainda precisava soltar mais algumas coisas para minha mãe e também pro meu irmão, mas isso poderia esperar. O que eu queria mesmo era me vingar do meu pai e isso eu fiz.
Me vinguei, na minha opinião, em alto estilo. Soltei o verbo, mostrei quem eu era e esfreguei na cara deles que eu tinha me formado, que era pós-graduado e que ganhava muito bem, obrigado.
À partir daquele momento eles sabiam que não estavam falando com qualquer um. Eu não era mais o mesmo e pelo menos isso ficou claro.
Óbvio que eu não precisei perguntar o motivo de minha expulsão de casa, porque isso era nítido. Eu só precisei colocar os ponteiros no lugar com relação ao que acontecera entre nós dois. Precisei mostrar que ele não podia simplesmente querer pisar em cima de mim, que eu não era mais adolescente e sim um homem, por mais que ele não acreditasse.
Chamar a minha mãe de cobra é outra coisa que não me deixa com a consciência pesada. Ela foi realmente uma cobra quando não quis me dar um abraço, quando não quis me ver no ano de 2.007. Naquela época eu precisava muito dela e o que ela fez? Me virou as costas.
Mas é como falam por aí. O mundo gira e um dia a gente está em cima, no outro a gente está em baixo. Eu saí por baixo em 2.005, mas voltei por cima em 2.012 e nada impediria e nem impede que um dia eu volte para baixo.
Saí uma criança, voltei um homem. Saí cursando o ensino médio, voltei pós-graduado. Saí com uma mão na frente e a outra atrás e voltei ganhando bem e com um carro praticamente 0 KM. O que eles queriam mais? Que eu desenhasse o meu sucesso?
Quando eu estava no meio do caminho notei que meu celular estava tocando. É claro que era o Bruno:
- Oi, amor?
- Menino... Onde você está, pelo amor de Deus?
- Indo pro hotel. Está tudo bem? Ouvi você chorando!
- Como não poderia chorar ouvindo e vendo o que eu vi?
- Você viu tudo? Ouviu tudo?
- Claro que ouvi! Acho que até o Nícolas ouviu lá no Rio de Janeiro. Caio, você virou um monstro!!!
Fiquei todo sem graça.
- Mas foi merecido! Ainda falta muito?
- Um pouco, mas logo eu chego aí e aí a gente conversa.
- Combinado então, amor. Eu te espero!!!
Desligamos e só quando eu cheguei nós conversamos melhor. Bruno me fez uma massagem enquanto a gente falava sobre o assunto.
- Ele é a pior pessoa que existe nesse mundo, Caio!
- Ele é assim, Bruno. Sempre foi e sempre vai ser assim.
- Espero que depois desses socos ele aprenda a lição...
- Você acha que eu fiz mal em bater nele?
- Não, não acho não. Ele não é pai. Se ele te tratasse como um filho, aí sim. Mas ele não trata!!!
Era verdade.
- Será que aquilo que você falou pro seu pai dos gêmeos é verdade? Será que a história vai se repetir depois de tanto tempo?
- Queira Deus que sim. Seria uma ótima forma dele quebrar a cara, você não acha?
- Claro! Seria um belo castigo que a vida daria ao seu pai.
- É! Seria mesmo, mas isso só Deus sabe, não é?
Independente de como fosse, eu teria que esperar e muitos anos para confirmar se a minha hipótese estava certa. Se fosse assim, de duas uma: ou o velho morreria de vez ou ele aprenderia. E eu torcia para que ele aprendesse.
Naquela noite eu consegui dormir como um anjo, porque estava mesmo me sentindo muito mais leve, muito mais pleno do que antes. Só faltava a conversa com minha mãe e com meu irmão para esvaziar de vez aquela mágoa que eu tinha do passado.
Bruno e eu estávamos na Feira de São Cristóvão. Eu aproveitei uma passagem rápida pelo Rio de Janeiro para comprar lembrancinhas para o Víctor e sua família. Eu precisava agradecer pelo tempo que fiquei hospedado na casa deles, não é?
Me aproximei de um moço que estava vendendo quadros e fiquei olhando as obras de arte. Era uma mais linda que a outra.
- Se quiserem algum é só me falar.
Aquela voz? Aquela voz? Eu olhei para o rosto do rapaz e percebi que nós Já tínhamos nos visto antes.
- Você? – falamos em uníssono.
- Vocês se conhecem? De onde você conhece esse cara, Caio?
- Oi, Rafael! Tudo bem?
- Nossa, Caio! Que coincidência! Eu estou bem e você?
- Bem também! Bruno, ele é o Rafael. Aquele cara que estava pedindo doação de sangue no hospital onde o Vini trabalha.
- Ah, é ele? Como vai?
- Bem e você?
- Bem!
- Caramba! Que mundo pequeno! E sua prima? Como ela está?
- Graças a Deus fora de perigo. Felizmente nós conseguimos mais doadores e ela conseguiu se salvar. Eu nunca vou conseguir te agradecer o suficiente por ter ajudado, Caio!
- Não tem nada que agradecer. Foi um prazer ajudar. É você que faz esses quadros?
- É, pois é – notei que ele ficou um pouco sem graça.
Não eram pinturas. Eram desenhos. E desenhos muito bem realizados. Eles estavam emoldurados e era tudo muito caprichado.
- Então você é um artista! Parabéns, são lindos.
- Que nada! Quem me dera fossem.
- São sim! Eu gostei de muitos deles.
Eram realmente lindíssimos. Um mais bonito que o outro. Tinham várias e várias paisagens e eu fiquei com vontade de levar todos.
- Ai, eu vou levar dois! Quanto custa?
Era baratinho. Eu gostei mesmo do trabalho do jovem.
- Quero esses dois!
- Ah, obrigado! Não são tão bons assim, mas eu faço o meu melhor.
- São ótimos! Você quer algum, Bruh?
- Quero sim! Eu gostei muito desse daqui da Praia de Ferradurinha. Vou levá-lo.
- Pô, muito obrigado! Vocês estão me ajudando muito!
O rapaz separou as obras de arte e as colocou em uma sacola. Eram quadros pequenos, mas muito bem desenhados. Eu gostei bastante. Os dois iam para a sala da minha casa em São Paulo quando eu a alugasse.
- Obrigado, viu moço? – falei.
- Eu é que te agradeço, Caio! Obrigado mesmo.
- Imagina. Você tem talento. Pense em levar essa carreira adiante.
- Quem sabe um dia eu chegue lá?!
- Vai chegar sim. É só você ter fé em Deus e focar no seu objetivo.
- Você é daqui do Rio mesmo? – perguntou Bruno.
- Não, não. Eu sou do interior, mas vim porque aqui é mais fácil de vender. Eu só venho de vez em quando para cá.
- Entendi. Bom, temos que ir. Prazer em revê-lo.
- O prazer foi todo meu! Vão com Deus e até qualquer dia.
- Até, Rafa! Fique com Deus você também.
2.013 já havia chegado e meu namorado e eu estávamos no aeroporto Santos Dumont. Depois de um breve regresso ao Rio para passar o final de ano, eu tinha novamente que voltar a São Paulo para iniciar o meu novo desafio profissional.
- Você tem mesmo que ir, amor? Não pode ficar nem mais 5 minutinhos?
- Não, coisa linda – eu agarrei meu príncipe pela cintura. – Eu tenho que ir!
- Ah – ele fez bico e eu me derreti todinho.
- Promete que vai me ver em São Paulo? Promete?
- Prometo!
- Então tá bom.
- Caio? – ouvi uma voz feminina atrás de mim. – O que você está fazendo aqui?
Me virei e vi que era a Duda. Ela estava acompanhada pelo Antony e eu deduzi que eles iam viajar à negócios.
- Como vai, Eduarda? Como vai, Antony?
- Não deveria estar trabalhando em São Paulo, Caio? – Antony teve a pachorra de me fazer essa pergunta.
- Então vocês não estão sabendo?
- Não! O quê? – Duda se fez de idiota.
- Eu fui demitido já tem quase 3 semanas!!!
- Ué... Por quê?!
- Não se faça de desentendido, Antony! Você sabe que eu fui demitido e você também sabe, Eduarda! Mas foi bom encontrar vocês aqui, queria soltar algo que está preso na minha garganta. Vocês pensam que eu sou idiota ou o quê?
- Por que, Caio???
- Porque o senhor, senhor Antony, me disse que eu iria para São Paulo para ficar meio período na loja e que talvez fosse apenas por um curto período, mas quando eu cheguei lá era totalmente diferente. Eu iria ficar período integral e ainda ia ter que realizar um trabalho igual ou mais intenso do que fiz em Copacabana, mas quem saiu perdendo nisso tudo foram vocês. Eu não fui para São Paulo para trabalhar na loja que você queria, Antony! Eu fui para São Paulo para trabalhar numa empresa que é mil vezes melhor que a de vocês, onde eu vou receber 5 vezes mais e vou trabalhar de segunda à sexta em horário comercial. Eu só aceitei ir para essa bendita loja para vocês custearem a minha ida, pagarem a minha gasolina, os meus gastos na viagem.
- Então você agiu de má fé, Caio!!! – Duda ficou estressada.
- Pois é, eu aprendi com vocês. Duda, na boa. Eu te adorava no começo, sou muito grato a você por tudo o que você fez por mim, mas de 6 meses pra cá você virou uma chata de galochas!!!
Ela ficou perplexa.
- Antony, você é nada mais nada menos do que um carrasco, que impõe metas inatingíveis e que se acha o dono do mundo. Pena que fora dali você não manda em nada. Seu babaca!!!
O Bruno deu risada.
- Vocês me levaram na maciota até não quererem mais. Me promoveram depois de quase mil anos, me jogaram na pior loja da região, me fizeram trabalhar como camelo no Deserto do Saara e ainda por cima não me reconheceram? Na minha testa não está escrito trouxa não!
Silêncio.
- Eu fiz uma revolução com os funcionários, amadureci muitos deles, fiz um puta trabalho de gestão e cadê o reconhecimento? Pé na bunda!!!
Eu estava com ódio!
- De toda forma, obrigado pela oportunidade que vocês me deram. Eu já saí da empresa, já recebi minha rescisão e estou numa empresa muito melhor que essa. Agora eu vou ser tratado como gente. Boa sorte pra vocês dois e até nunca mais!!!
Eu senti um pouco de pena da Duda. Ela me olhou com os olhinhos marejados, mas eu tinha que falar. Isso estava preso na minha garganta e eu só não os procurei no Rio de Janeiro durante os poucos dias que fiquei lá, porque tinha outras prioridades. Mas foi ótimo soltar tudo isso na cara dos dois.
Depois que fechei a conta do hotel, fui direto para a casa do Víctor para buscar meu filho e também para agradecer por eles terem cuidado do Enzo por tanto tempo.
- Vem com o papai, filho! – falei.
Ele ficou me olhando com aquela cara amassada de sono e eu senti vontade de arrancar bigode por bigode com uma pinça, de tão lindo que ele era!
- Obrigado por terem cuidado dele, viu?
- Ele vai fazer falta – Dona Maria ficou triste.
- Fica triste não, Dona Maria! Quando a Gertrudes tiver neném eu deixo um pra senhora.
- Por favor. Vou ficar esperando.
- Então tá bom! Vamos, Enzo. Você precisa conhecer a sua casa nova.
Dirigir de Higienópolis até a Vila Mariana em pleno horário de pico foi o mesmo que pagar todos os meus pecados dentro daquele carro.
- Canta comigo Enzo: um elefante incomoda muita gente; dois elefantes incomodam, incomodam muito mais! Três elefantes incomodam muita gente; quatro elefantes incomodam, incomodam, incomodam, incomodam muito mais!
...
- Dezenove elefantes incomodam muita gente; vinte elefantes incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam, incomodam muito mais!!!
O coitado do Enzo já estava ficando incomodado com a minha cantoria, mas esse foi o jeito que eu encontrei para passar o tempo.
Eu estava feliz. Pela primeira vez em minha vida eu ia ter um cantinho pra chamar de meu. Onde ninguém meteria o bedelho, onde ninguém me expulsaria, onde ninguém ditaria regras.
Ninguém além do Bruno, é claro. Ele seria muito bem-vindo ali sempre que quisesse e se quisesse ficar pra sempre, é claro que ele ficaria. Eu não iria me opor em nada e isso era óbvio.
A primeira coisa que fiz quando cheguei no prédio foi subir com o Enzo. Eu ia carregar as minhas coisas aos poucos. Primeiro eu queria que o meu filho conhecesse a casa nova.
E foi enquanto eu esperava o elevador no subsolo, onde ficava a garagem, que eu conheci aquele casal lindo!
Ela tinha estatura mediana, um rosto lindo, cabelos longos, pele clara e sedosa e estava com um menininho no colo.
Ele era alto, corpo escultural, cabelo curto e espetado, também tinha a pele branca e os olhos na cor mel, puxados pro dourado. Lindos. Naquele momento eu não sabia que eles eram o Henrique e a Gabrielle, irmão e cunhada do Eder, cunhado e irmã do Rafael. Que casal bonito!
Eles desceram no 9º andar e depois eu subi até o 10º, onde ficava o meu apartamento.
- Olha, Enzo! Essa é sua nova casa! Não é legal?
- Miau.
- ENZO! VOCÊ ME RESPONDEU DEPOIS DE MIL ANOS SEM FALAR COMIGO!!!
Isso foi motivo de comemoração! Eu fiquei pulando com o gato no meio do apartamento e depois fiquei dançando com ele para um lado e para o outro.
- Não é lindo o nosso apartamento?
- Miau.
Aposto que ele queria ir pro chão. O coitado já deveria estar tonto e cansado das minhas palhaçadas.
- Olha, filho! Sua casa vai ficar aqui na lavanderia. Ali é o banheiro e você pode usar quando quiser, viu? Papai vai deixar um potinho de ração e de água aqui perto do tanque pra você. Viu?
Senti falta da Gertrudes me chamando de mãe, mas tudo bem. O Enzo já estava voltando a ir com a minha cara. Ou será que era saudades da Dona Maria?
- Vá conhecer a casa, mas não arranhe nenhum móvel, está me ouvindo? Eu paguei os olhos da cara por tudo isso!
Eu desci e fui pegar duas das três malas que tinha no meu carro. Se eu quisesse, eu poderia levar tudo de uma vez, mas preferi não ser afobado e resolvi levar aos poucos. Foi graças a isso que eu conheci alguns vizinhos do prédio onde eu ia passar a morar à partir daquele momento.
Primeiro, conheci o Henrique e a Gabrielle e depois conheci o Eder.
É claro que não foi assim de cara que a gente passou a se falar, mas depois de um tempo, depois de tanto pegar o elevacdor juntos, a nossa amizade começou a ser desenhada.
Ele era alto, tinha o corpo musculoso, cabelos castanhos e olhos dourados, idênticos ao do irmão mais velho. O Eder aparentava ter mais ou menos a minha idade e depois de um tempo, eu descobri que na verdade ele tem a idade do Bruno. Eles têm só 15 dias de diferença.
E na 3ª viagem que eu dei até o meu carro, eu conheci o Rafael. Ele estava lindo naquele dia, usando um traje social todo preto. O corpo era belíssimo, o rosto então nem se fala, mas o que mais chamava a atenção eram os olhos incrivelmente verdes. Gostei dos olhos dele, mas os do meu namorado eram muito mais bonitos.
Quando subi com a 3ª mala, comecei a arrumar as minhas coisas. Iniciei pelo guarda-roupa. Coloquei as minhas roupas de um lado e deixei um espaço enorme para as do Bruno. Eu sabia, eu tinha certeza que um dia ele iria morar comigo. Por isso, eu já comprei logo um armário de casal.
Depois arrumei os meus álbuns, meus CDs, meus DVDs, meus enfeites e só por fim pendurei meus quadros nas paredes. E pronto! Meu apartamento estava completo.
O meu imóvel era similar ao do Bruno. A diferença é que o meu é um pouco maior que o dele e tem dois quartos. Eu fiz questão que fosse assim, já que nós temos a intenção de adotar uma criança quando for possível. Assim o quarto já fica ali, esperando pelo menino ou pela menina.
A sala era idêntica à dele: tinha um conjunto de estofados de couro na cor preta; almofadas na cor branca; uma mesa de centro; uma estante com televisão, telefone, som, livros, vários porta-retratos, onde eu coloquei fotos minhas, do Bruno, do Nícolas, do Rodrigo e uma em particular, onde todos os meus amigos estavam reunidos e uma fonte d’água que reproduzia o barulho de uma nascente de rio. Esse barulho era bem calmo, bem tranquilizante. E nas paredes, eu coloquei os quadros de paisagens do desenhista e um relógio. Ficou bem legal.
Da sala nós íamos para os dois quartos. Um eu deixei totalmente vazio e o outro eu enchi de móveis, afinal era nele onde eu ia dormir.
No meu quarto tinha uma cama de casal; dois criados mudos, cada um com um abajur e um deles com uma foto do Bruno; um guarda-roupa de casal; tapetes ao redor da cama; cortina e nada mais. O meu quarto era uma suíte.
Só faltou a cozinha. Essa não era muito grande, mas mesmo assim era maior que a do Bruno. Nela eu coloquei um armário de parede, uma geladeira, um fogão, um micro-ondas e a mesa era embutida no armário. Ela também era de 2 cadeiras como a do Bruno, mas a diferença é que pra ela aparecer, eu tinha que puxar no armário. Era bem legal. Todos os móveis da casa estavam combinando. Eles eram nas cores tabaco. Eu gostei muito do resultado.
E na lavanderia, onde seria o quartinho do Enzo, tinha uma máquina lava e seca, porque como o espaço era pequeno, eu não ia ter onde pendurar as roupas. Por isso a necessidade de uma máquina dessas.
O apartamento era composto por dois banheiros na mesma medida e extensão. Eu equipei os dois com produtos de limpeza e produtos de higiene pessoal. A minha casinha ficou um brinco e eu fiquei orgulhoso do resultado!
Fiquei tão orgulhoso que filmei todos os ambientes para mostrar aos meus amigos nas redes sociais. Obviamente que eu faria isso de forma privada. Eu não ia expor a minha vida tão facilmente assim, não é mesmo?
Ainda em janeiro eu comecei a trabalhar na empresa nova. Assumi a minha vaga no dia 28 e foi um momento marcante na minha vida, porque finalmente eu estava entrando na minha área, depois de 3 anos formado.
- Pessoal, esse daqui é o Caio – falou Roberto. – À partir de hoje ele é o novo Gerente de Recursos Humanos e eu quero que vocês deem as boas-vindas a ele, por favor!
A empresa era fascinante. Eu estava verdadeiramente apaixonado por tudo o que me cercava e ainda naquele dia eu comecei a me situar a respeito dos assuntos que eu seria obrigado a tratar.
- Qualquer coisa me liga, viu Caio?
- Pode deixar, Roberto. Obrigado por tudo.
- Ah, já ia esquecendo! Esse daqui é seu telefone corporativo. Pode ficar com ele o dia todo e levar para casa se quiser. Não abuse.
- Pode deixar!
Um corporativo só meu? Era isso mesmo, produção? Quando eu imaginei que um dia eu teria um telefone corporativo só meu? NUNCA!!! Era muita felicidade.
Eu entrei na minha sala e percebi que ela não estava de acordo com o que eu queria. Por isso, antes mesmo de abrir o computador para instalar o meu e-mail. Eu fiz foi uma mudança geral naquela sala.
Troquei os móveis de lugar, mexi na decoração, deixei as janelas abertas, liguei o rádio baixinho e aí sim, comecei a trabalhar. Eu estava radiante de tanta felicidade!!!
Algo dentro de mim dizia que eu fiz a escolha certa quando aceitei o convite do Roberto para trabalhar naquela empresa. Ali as coisas eram sérias e eu teria toda autonomia necessária para comandar a minha equipe.
E acabou que meu raciocínio estava certo. Eu tive mesmo toda a autonomia com eles e fiz um trabalho bem bacana, o que deixou todos felizes. Incluindo o Roberto.
Por causa disso, eu tive as minhas atribuições aumentadas. Depois de certo tempo, passei a comandar também as equipes de RH de outros estados do Brasil, por isso às vezes eu tenho que viajar à trabalho.
- GRÁVIDA? – eu dei um berro no telefone e senti as minhas pernas bambearem. – VOCÊ ESTÁ PRENHA, JANAÍNA?!
- Estou! – a negra soltou a gargalhada que só ela sabia dar. – Não é lindo?!
- ESTOU PRETO PASSADO NA TORRADEIRA ELÉTRICA!!! É SÉRIO ISSO, CRIATURA?
- É sério, peste bobônica! Estou de dois meses e meio!
- Me amarrota que eu fiquei passado! E quem é o pai? Não me diga que é o traficante do Alemão?
- Ah, cala a boca! É lógico que é do professor da academia, né? Do meu personal particular!!!
- Estou pretérito no verbo não acredito.
- Mas é a mais pura verdade, eu serei mamãe! Ai que badalo!
- Deus, tende piedade dessa pobre criança que vem ao mundo, Pai! Tende piedade!
- Ah, “felá” da puta! Sua sorte é que você está atolado no frio da Patagônia, senão eu te daria meia hora de tapa na cara!!!
- Janaína do céu! Depois dessa eu preciso até de uma cachaça! Quando que eu ia imaginar que você ficaria buchuda, negra?
- É, mas eu estou! Chegou a hora, amado. Aceita que dói menos.
- Não estou chocado por sua causa, estou chocado pela pobre criança! A coitada não merece ter uma mãe como você!
- ESCUTA AQUI, FILHO DO MARQUITO COM LADY FRANCISCO, O MEU BEBÊ VAI SER A CRIANÇA MAIS AMADA DO MUNDO, TÁ LEGAL? SEU “FÉLA” DA PUTA MAL-EDUCADO, MAL-AMADO, MAL-ENCARADO! ONDE É QUE JÁ SE VIU FALAR UMA COISA DESSAS PARA UMA GESTANTE?! SE LIGA, FEBRE DO RATO!
- Pronto, já baixou a Janaína nela de novo. Mas é sério isso? Você não está mentindo pra mim?
- É sério, menino! Qual a dificuldade em entender que eu vou ser mamãe no auge dos meus 18 anos? Chegou a hora!
- Bom, olhando por esse lado, realmente chegou. Já que você está chegando aos 50 que nem a minha mãe, é melhor você ter filho agora. Senão daqui alguns anos o povo vai achar que seu filho na verdade é seu neto.
- Quando você vem no Rio mesmo, querido?
- Não sei, por quê?
- Para eu te receber no aeroporto com um RIFLE, CONDENADO! EU NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO ESTOU CHEGANDO NOS CINQUEEEEEEEEEEEEEENTA!
Ela deu um grito tão fino, que deu dor no meu ouvido.
- Não precisa me deixar surdo! Credo!
- Vem tirar onda de mim! Vem!
- Ai que linda, Jana! Parabéns! Nossa, estou preto passado na chapinha, mas fiquei muito feliz! Vou ganhar meu quarto sobrinho, que lindo!
- É! Eu estou feliz da vida!!!
- E o meu ex-personal gostosão? Como reagiu?
- Muito bem! Nós planejamos direitinho. Foi uma ideia em conjunto.
- Que bom, amor! Vai pintar casamento por aí?
- JESUS ME DEFENDA NA HORA DO MEIO DIA! EU QUERO TER UM FILHO, CAIO, NÃO QUERO ME AMARRAR PELO RESTO DA MINHA VIDA! Com licença que eu estou gestante?
- Onde você está, peste?
- No ônibus. Voltando para minha linda casa. Com licença, com licença, eu estou gestante, eu estou gestante. Obrigada! Licença, minha senhora...
- Só você mesmo, Janaína! Só você mesmo!
- Licença que eu estou gestante. Eu estou gestante, com licença... Ah, obrigada! Pronto, sentei. Diga, menino?
- Você é louca, Janaína!
- É brincadeira – ela suspirou. – Quam sabe mais para frente a gente junte os trapinhos?
- Uhum. Fiquei contente. Espero que seja uma menininha, mas que ela seja mais bonita que você.
- Se for menina e ela não sair parecida comigo, eu mando de volta pra fábrica por defeito de fabricação!!!
- Idiota – ri.
- Se essa criança nascer com a cara do pai, eu me mato. Eu é que vou carregar por 9 meses e ainda vai ter o focinho do pai? Tá repreendido em nome de Jesus! Tem que ser a minha cara. Só minha.
- Não, não deseja isso pra criança não! A pobre coitada não merece um castigo desses!
- EU VOU TE MATAR, NEGUINHO! TÁ ME ENTENDENDO? COLOQUE SEUS PÉS IMUNDOS AQUI NO RIO DE JANEIRO E EU TE MATO! “FÉLA” DA PUTA, FEBRE DO RATO!!!
Ainda no finalzinho de janeiro eu recebi uma ligação do Cauã. Ele queria falar comigo e eu acabei topando conversar com ele, porque além de ouvir o que ele tinha pra falar, eu também tinha muita coisa a despejar na cara dele.
Por esse motivo, convidei meu gêmeo para ir até meu apartamento e ele aceitou. Não fiz isso para esbanjar o que consegui, muito menos para humilhá-lo. Eu só o chamei para o meu apartamento, porque lá era um local mais tranquilo e a gente poderia conversar com um pouco mais de calma e privacidade. Ele chegou no horário combinado.
- Oi, Caio!
- Oi, Cauã!
Pausa.
- Hã... Pode entrar!
- Com licença!
Meu irmão entrou e ficou olhando tudo. acho que ele gostou, porque assoviou e me parabenizou por aquela conquista:
- Seu apê é foda! Parabéns!
- Obrigado! Pode sentar! Quer alguma coisa? Uma breja?
- Não, valeu. Eu só quero conversar com você.
- Estou te ouvindo.
- Caio, eu sei que você tem todos os motivos do mundo para me odiar, para querer me ver bem longe de sua vida, mas eu não suporto mais carregar esse peso que carrego há anos nas minhas costas. Eu quero te pedir perdão!
Ele soltou tudo de uma vez. Por essa eu não esperava. Até esperava, mas pra mim ele iria rodear, rodear, rodear e só depois ia me pedir desculpas.
- Quer dizer que você resolve me pedir perdão depois de 7 anos e 7 meses como se nada tivesse acontecido no passado? – eu fiquei bravo.
- Não, não é como se nada tivesse acontecido no passado! Eu sei que eu agi incorretamente com você... Eu sei que fui um verdadeiro idiota, que te magoei, que pisei em você como alguém pisa em uma barata...
Era justamente isso que eu ia falar pra ele.
- Mas eu preciso que você saiba que eu mudei. Que naquela época eu era uma criança, um irresponsável que agiu no calor do momento e agiu de forma incorreta.
- Muito incorreta! Você não me estendeu a mão em nenhum momento. Não ligou para saber como eu estava, não fez nada. Absolutamente nada!
- Eu sei disso. Eu sei de tudo isso, mas me ouve: eu mudei! Eu mudei de verdade, eu não sou mais o mesmo idiota de antes, da mesma forma que você não é mais o mesmo garoto ingênuo de antes!!!
Verdade!
- Caio, eu te fiz muito mal, eu sei disso. E sei também que nada, que nem todo o tempo do mundo será capaz de apagar as mágoas que você tem, mas eu juro por tudo o que há de mais sagrado que eu mudei! Hoje eu não penso mais como antes, hoje eu te entendo, te respeito e...
E?
- E... Eu... Quero muito... – Cauã começou a chorar. – Que você... Me perdoe... Porque eu estou... Arrependido...
Eu fiquei calado. Eu também senti vontade de chorar.
- Um pouco tarde esse arrependimento, Cauã. Eu não sei se posso te perdoar.
- Eu sei que é tarde – ele secou as lágrimas. Nós não estávamos nos olhando. – Mas... Acho que nunca é tarde... Para recomeçar...
Recomeçar? Quem disse que eu queria recomeçar alguma coisa com ele?
- Sei que você me odeia, mano...
Mano?
- Mas... Eu estou tão arrependido!!!
- Por que você fez questão de espalhar pra escola inteira que eu sou gay? – minha voz falhou.
- Porque eu era burro, eu era infantil, eu era imaturo! Eu queria te ver na pior, eu queria te ver longe de mim, longe de nossos pais...
- Você queria tudo pra você, não é? – eu chorei.
- É, Caio. Eu queria exclusividade. Eu não aguentava te olhar e me ver no seu rosto! Você era, você é muito igual a mim; eu queria me sentir sozinho no mundo e eu me senti sozinho nos primeiros meses; fiquei feliz, mas depois de um tempo... Eu senti a sua falta.
- Mas não me ligou, não me procurou. Você disse que não queria me ver nunca mais na sua frente. Isso doeu tanto!!!
- Doeu em mim também, Caio! Mas eu tinha que mostrar que eu conseguia viver sem você, mas você fez tanta falta!
Ele também me fez muita falta.
- De repente eu não tinha mais com quem brigar, eu não tinha mais com quem discutir, eu não tinha mais com quem andar de bicicleta...
“- Caio?
- Que é dessa vez, inferno?
- Vamos andar de bike, maninho?”.
- Eu e você brigávamos muito, mas a gente se amava! – meu irmão continuou.
- É verdade – sequei uma lágrima.
- Eu deveria ter te ajudado, Caio! Eu deveria ter te dado a mão, ter te apoiado! Eu perdi 7 anos longe de você, mas eu não quero que isso aconteça novamente.
- Você me feriu muito, Cauã! Todos me feriram muito! Por causa do infeliz de seu pai eu fui obrigado a sair de São Paulo, fui obrigado a ir para uma cidade que eu não conhecia! Mas Deus é tão bom, Deus é tão maravilhoso na minha vida que eu rapidinho conheci pessoas maravilhosas, pessoas que passaram a ser a minha família, sabe?
- Eu sei que a gente te fez muito mal, mas eu quero reparar meus erros. Se você quiser, se você estiver disposto, a gente pode começar uma amizade nova, a gente pode fazer um novo fim!
- Como se fosse fácil assim, né? Depois de 7 anos você vem, pede desculpas e acha que vai ficar tudo por isso mesmo? Que eu vou perdoar e que a gente vai voltar a se falar?
- Eu sei que você tem todo o direito do mundo de não aceitar as minhas desculpas, de não querer me ver mais, mas eu precisava falar tudo isso, para pelo menos tirar um peso de minhas costas.
Eu fiquei calado por um tempão, lembrando vários momentos que meu gêmeo e eu vivemos quando crianças.
- Eu trouxe algo pra você, Caio.
Eu olhei pro Cauã e vi que ele estava segurando uma espécie de livro. O que seria aquilo?
- O que é isso? – questionei.
-É um álbum de fotos. Eu que fiz. Você quer ver?
Ele que fez? Que história era aquela? Confesso que fiquei curioso com aquele gesto. Eu fui até o sofá, sentei ao lado do meu gêmeo e peguei o álbum. Era bem pesado.
- São fotos nossas – ele secou mais uma lágrima.
- Fotos... Nossas?
- É, Caio. Eu demorei 1 ano para finalizar, mas eu consegui. Eu sabia que um dia a gente ia se encontrar e eu queria que quando isso acontecesse, esse álbum estivesse pronto. Eu queria te dar de presente. Você aceita?
Fiquei sem resposta. Por que ele estava fazendo aquilo?
Eu abri e logo de cara vi uma foto onde estavam escritos os nossos nomes em letras garrafais. Caio & Cauã.
O álbum era em ordem cronológica e começava com uma foto minha e do meu irmão recém-nascidos, ainda na maternidade, no ano de 1.988.
- Nossa – eu não me lembrava daquelas fotos. – Onde você conseguiu isso?
- Eu saí procurando lá em casa, nas coisinhas de nossa avó.
Minha avó já era falecida, mas as coisas dela estavam guardadas, porque a minha mãe não quis se desfazer de nada, além das roupas.
Eu fiquei olhando aquela foto minha e do meu irmão e fiquei incrédulo. Nós eramos simplesmente a cara do David e do Davi na mesma época de vida.
- Nessa foto nós estamos...
- A cara do David e do Davi – ele completou o meu raciocínio.
Era incrível como a semelhança era forte. Pouca coisa diferenciava meu gêmeo e eu dos nossos irmãozinhos recém-nascidos.
A segunda foto já era na nossa casa. Nós dois estávamos dormindo no berço, um abraçado com o outro. Eu não sabia quem era quem ali naquela foto.
- Quem é você e quem sou eu?
- Eu não sei.
A terceira foto era da gente tomando banho na banheira. Um de nós dois estava chorando. Eu novamente fiquei sem saber quem era quem.
Eu fui passando foto por foto e quando as imagens mostraram um Caio e um Cauã um pouco mais crescidinhos, eu fui me lembrando das épocas e revivendo momentos que tinham acontecido com nós dois.
- Essa foto é do...
- Nosso primeiro dia de aula. Você lembra?
“- Eu quero um beijo dos meus homenzinhos – disse a minha mãe.
Cauã e eu fomos beijar a nossa mãe e cada um beijou uma bochecha, mas ao mesmo tempo.
- Agora escutem o papai, meus filhos – meu pai abaixou. – Não quero que se separem um segundo sequer, tá bom? É pra ficarem juntos durante todo o dia, pra não se perderem um do outro. Prometem?
- Tá, pai – eu falei.
- Nós não vamos sair, né Caio? – Cauã segurou a minha mão.
- É, Cauã...”.
Uma lágrima caiu. Lembrar daquele dia me trouxe vários outros momentos de felicidade ao lado do meu gêmeo.
- Claro que eu lembro!
- O nosso pai pediu pra gente não se separar e a gente andou de mãos dadas o dia inteiro. Você lembra?
- Lembro.
Eu virei a página e vi uma foto do nosso aniversário de 7 anos de idade. Nós estávamos vestidos iguaizinhos.
“- E pro Caio nada!
- TUDO!!!
- Então como é que é?
- É, é pique, é pique, é pique, é pieque, é pique. É hora, é hora, é hora, é hora, é hora.
- E pro Cauã nada!
- TUDO!!!
- Então como é que é?
- É, é pique, é pique, é pique, é pieque, é pique. É hora, é hora, é hora, é hora, é HORA. Rá, tim, Bum! CAIÔ, CAUÃ, CAIÔ, CAUÃ, CAIÔ, CAUÃ...”.
A outra foto era de um dia em que eu, meu irmão e meus pais fomos passar o dia no zoológico. Eu lembro que nesse dia tropecei, caí e me esfolei todo, mas quem chorou foi meu gêmeo:
“- Quem caiu foi seu irmão, por que você está chorando? – meu pai se irritou.
- É que tá doendo em mim também – Cauã armou o maior berreiro, enquanto a minha mãe limpava o sangue nos meus braços e joelhos.”.
Cauã deve ter tido um trabalho monstro para montar aquele álbum, porque ele tinha muitas fotos e era uma mais bonitinha que a outra. Até a hora em que a gente começou a virar adolescentes.
- Nessa a gente tinha quantos anos? – perguntei. – Você lembra?
- 11. A gente tinha acabado de entrar na puberdade, lembra?
Verdade. Eu me lembrei que de repente meu irmão e eu encontramos pelos nas nossas partes íntimas e achamos aquilo um horror, mas não falamos pros nossos pais. A gente estava com vergonha.
- A gente rra tão idiota! – eu ri comigo mesmo.
- É mesmo!
E de recente eu achei uma foto que eu amava, mas que não me lembrava mais da existência. Era uma foto de uma festa que teve na escola. Cauã e eu estávamos na 6ª série se eu não me engano.
- Essa é a foto daquela festa?
- Em que a gente fez a coreografia dos “Braga Boys” – ele deu risada e ficou me olhando.
- Como era mesmo a música?
- Bota a mão nessa cintura – ele cantou.
- Bota a mão nessa cintura... O movimento é sexy...
- O movimento é sexy...
- E a mulherada se joga assim... Assim... Assim...
- Todo mundo com uma mão vai na cabeça...
Foi impossível não dar risada disso. Eu tive tantos momentos felizes ao lado do meu irmão!
- Ai... A nossa avó com nós dois deitados no colo dela! Que saudade!!!
- É... Lembra que a gente ficava confundindo a cabeça dela?
“- Cadê o beijo da vovó, Cauã?
- Vó, o Cauã sou eu! – menti.
- Mentiroso! Você é o Caio!
- Eu sou o Caio então!
- Não vó – Cauã continuou a brincadeira. – Eu sou o Caio!
- Não, Caio, você é o Cauã!”.
- A gente adorava fazer isso.
- É – eu sequei mais uma lágrima. – Que saudade das nossas avós.
- Muita! Elas me fazem falta até hoje.
- Pra mim também. Eu tenho certeza que a vó Santina me aceitaria do jeito que eu sou.
Silêncio. Ficou um clima estranho no ar. Eu continuei virando as páginas daquele álbum e lembrei de muitos momentos ao lado do meu gêmeo. Uns bons, outros nem tanto, mas todos marcantes. Ele me fazia falta sim, não adiantava negar.
Quando eu cheguei no final do álbum, notei que havia espaço para várias outras fotos e eu tive que perguntar porquê havia todo aquele espaço disponível. Eu não esperava que a resposta fosse tão bonitinha assim:
- Eu deixei esse espaço pra gente completar o álbum até ficarmos velhinhos. Se você quiser, se você deixar, se você permitir, é claro.
Nesse momento a minha garganta deu um nó. Se ele queria me atingir com aquele álbum, ele conseguiu.
- Eu não quero mais ficar longe de você... Irmão... – a voz dele ficou embargada.
- Sabe, Cauã... Não é tão fácil perdoar assim. Você me fez muito mal, me machucou muito, me humilhou muito, me ofendeu muito! E eu não posso deletar isso de uma hora para outra!
- Sei disso, Caio. Eu também não posso deletar o que te fiz. Sei que fui um covarde, um péssimo irmão, mas eu estou disposto a corrigir os meus erros!
Cauã parecia mesmo mudado. Ele estava amadurecido, estava seguro do que falava e eu conseguia enxergar verdade nos olhos dele.
Não posso negar que meu irmão me fazia muita falta, muita mesmo. Principalmente depois que a gente voltou a se ver, em setembro de 2.012. Daquele dia em diante, a minha vida não era mais a mesma, porque eu sabia que ele estava perto, mas ao mesmo tempo longe.
Antes não. Antes eu tinha certeza que ele estava apenas longe. Longe demais por sinal.
- Eu te sentia tão perto de mim de vez em quando – ele falou.
- Sentia? – minha voz ainda estava embargada.
- Sim. Eu via as suas fotos, via o seu quarto e pensava que você estava na cidade. Que iria chegar a qualquer momento. Mas você nunca chegava.
- Por que não me ligou? Por que não me procurou?
- Eu até queria, mas eu tinha um pouco de medo da sua reação. Eu só liguei quando não tinha mais alternativa. E se não liguei antes, foi porque senti vergonha. Vergonha de falar com você, vergonha até de mim mesmo, sabe?
Como ele estava mudado!
- Eu cresci, Caio. Você cresceu. Nós crescemos e perdemos a chance de passar vários momentos juntos. Eu não vi a sua formatura, não vi você crescer na vida e eu nunca me perdoarei por isso.
- Posso saber o que você faz da vida?
- Eu comecei a trabalhar num banco esse mês. Sou formado em Processos Gereciais e Você?
- Processos... Gerencias? Tecnólogo?
- Uhum. Me formei em 2.011.
- Eu sou formado em Gestão de Recursos Humanos. Me formei em 2.009 e em 2.011 fiz pós no mesmo curso.
- Bacana. E você trabalha na área?
- Agora sim.
- Por isso você voltou pra cá, não é?
- Uhum – confirmei e voltei a olhar todas as fotos do álbum.
Houve um longo período de silêncio, onde eu fiquei pensando em tudo o que ele tinha dito.
De todos daquela casa, Cauã foi o que me fez menos mal. É claro que ele foi um ogro quando me expôs daquele jeito na escola, quando brigou comigo na rua, quando pediu para eu desaparecer da frente dele, mas ele mesmo disse que era uma criança. E era mesmo.
Eu me surpreenderia muito se aos 16 anos de idade ele agisse de outra forma, sendo tão tosco como ele era. Se fosse eu, talvez agisse da mesma maneira!
- Sabe, Caio...
- Hum?
- Eu não queria mais perder nenhum dia longe de você. Você é meu irmão gêmeo, a gente dividiu tudo a vida toda, até a barriga de nossa mãe; não vamos deixar o nosso orgulho falar mais alto!
Talvez ele tivesse razão. Talvez eu estivesse sendo orgulhoso demais em não querer perdoá-lo e talvez fosse o momento de passar uma borracha no passado, viver o presente e pensar no futuro.
Se ele estava mudado como dizia e como aparentava, eu ainda não sabia, mas algo dentro do meu coração dizia para eu aceitar aquele pedido de desculpas.
Só que eu ainda precisava pensar um pouco a respeito de tudo o que ele tinha dito. Eu ainda precisava colocar tudo na balança, precisava abrir meu coração e ver se ele merecia de fato voltar a ter um espaço na minha vida ou não.
- E você me aceita como eu sou? – perguntei.
- Sim – ele respondeu imediatamente. – Te aceito como você é. Com seus defeitos, com suas qualidades, com suas virtudes, com seus medos, seus anseios... Sendo gay, sendo bi, sendo hetero, você é meu irmão e eu não quero mais viver longe de você. Eu preciso de você, eu quero você ao meu lado pra sempre, Caio!
- Só que seu pai não me aceita.
- E daí? Eu não devo satisfação da minha vida pro nosso pai! Se ele não te aceita, o problema é dele!
- Só que se eu voltar a ter amizade com você, você pode ter problemas com ele.
- Não me importa, Caio! Eu não ligo mais pra essas coisas. Eu amo o meu pai, mas eu odeio essa atitude dele. Ele é muito preconceituoso e eu não quero ser que nem ele.
- Mesmo? – minha voz quase não saiu.
- Mesmo – ele me fitou de novo.
Silêncio novamente. Eu estava com muita vontade de dar um abraço nele.
- Me perdoa?
- Eu preciso de um tempo.
- Eu te dou todo o tempo que você quiser.
- Então tá bom. Obrigado.
Pausa. Ele ficou calado, fitando os próprios pés. As nossas roupas estavam parecidas de novo.
- Você morou no Rio de Janeiro todos esses anos?
- Sim.
- Você tem um pouco de sotaque.
- É, mas eu estou perdendo. Só em um mês eu já estou perdendo.
- E como foi a sua vida lá? Se quiser me contar.
- Ah, não foi fácil não. Eu passei fome, passei frio, tive problemas, mas dei a vlta por cima!
- Passou fome?
- Sim. No começo sim. Eu só tinha um pacote de bolacha de maisena pra comer e água. Só. Daí Deus me mostrou um anjo, a Dona Elvira e ela me deu emprego e à partir daí as coisas começaram a melhorar.
- Eu acho que vi alguma foto dela no seu Facebook.
- É tem foto dela sim. Ela é como a minha segunda mãe, sabe?
- Imagino.
- Daí depois eu conheci o Rodrigo e esse sim foi um anjo na minha vida!
- É ele que é seu namorado?
- Não – eu sorri. – Ele não é meu namorado. Ele é meu irmão. Eu chamo de postiço.
- Irmão? – ele ficou tristonho. – Então ele ficou no meu lugar?
- É, Cauã! Ele ficou e ainda está pra te falar a verdade.
- Então isso quer dizer que eu nunca vou ter um espaço na sua vida, não é?
- Não disse isso, disse? Disse que ele ainda está. Ele vai continuar sendo o meu irmão pra sempre, porque ele salvou a minha vida, mas você pode ter um espaço de novo daqui pra frente.
- Você vai me perdoar? – meu gêmeo estava sério.
- Não sei.
Eu estava pendendo mais pro lado do sim. Era a primeira vez que eu estava mantendo um diálogo calmo com ele depois de todos aqueles anos.
- Eu pensei que o Rodrigo fosse aquele lá de olhos azuis.
- Não, não. Ele é o Bruno. Meu namorado, marido, companheiro, tanto faz.
- Namorado ou marido? – ele sorriu.
- Na teoria namorado. Na prática marido porque a gente morou juntos por muito tempo.
- E vocês ainda estão juntos?
- Lógico! Eu não quero me separar dele nunca mais. Ele é a minha alma gêmea.
- Que bonito. Eu queria saber da história de vocês um dia.
- Quem sabe um dia eu te conte?
- É, quem sabe!
- Eu pensei que você ainda estivesse com a Joyce.
- Não. Nós terminamos em 2.007.
Isso me fez lambrar do dia em que fui em São Paulo e ele me chamou de fantasma.
- Você me viu detrás do poste naquele dia, não viu?
- Vi – ele suspirou. – E me arrependo muito de não ter ido falar com você.
- Você me chamou de fantasma.
- Porque pra mim você era um fantasma. Eu pensei que era só a minha imaginação. Depois a Joyce me disse que era você mesmo e aí eu me arrependi. Eu deveria ter falado com você.
- Foi nessa época que a nossa mãe me negou um abraço, sabe?
- Sim, eu sei. Ela me contou e acredite: ela também está arrependida.
- Ela não passa de uma cobra!!!
- Sei que você pensa assim, mas tente dar uma chance a ela, Caio. Ela te ama, sente a sua falta.
- Um pouco tarde, não acha?
- Sim, mas quem não erra nessa vida? Me diz?
Fiquei calado.
Eu continuei pensando em tudo. Aquela conversa com meu irmão já estava demorando mais de uma hora e a cada segundo que passava, eu tinha mais vontade de abraçá-lo.
- Eu estou arrependido, só quero que saiba disso.
- Uhum.
- Eu vou te deixar a sós, Caio. Eu preciso voltar pra casa.
- Hã... Posso fazer uma pergunta?
- Sim!
- Você não tem um carro?
- Não, Caio.
Caí do cavalo em alto estilo. E eu julgando que ele tinha ganho um quando fez 18 anos!
- Pensei que você tinha ganhado um quando fez 18 anos.
- Eu queria, mas não deu pra ter. Naquela época o nosso pai bebia muito e ficou arruinado. Nós só estamos nos reerguendo agora.
Arruinado?
- Arruinado?
- Sim – ele suspirou de novo. – Nós só não perdemos o carro e a casa porque minha mãe e eu pagamos as dívidas dele. Foi um momento muito difícil, viu?
- E isso aconteceu por minha causa?
- Não se culpe pelo erro do nosso pai. Você não tem culpa de nada. O culpado é ele, por ser preconceituoso, por ser um cara tão malvado! Se ele se arruinou foi porque quis, não por sua causa.
Ele estava me defendendo?
- Mas aposto que é isso que ele diz, não é?
- É, mas a minha mãe e eu não deixamos ele te culpar...
- Você me defende?
- Defendo – Cauã suspirou.
- Por essa eu não esperava!
- Eu não sou um monstro como você pensa, sabe Caio? Eu tenho sentimentos.
- Eu também tenho sentimentos. Eu tenho um coração.
- Eu sei disso. Eu sinto tanto a gente ter passado todos esses anos longe um do outro!
- Sente mesmo?
- Sim! Eu estou aqui, não estou? Estou te ofendendo por acaso?
- Não.
- Já fiz isso, mas nunca mais vou fazer. Eu te quero bem, irmão. Embora você ache o contrário.
- Por que você me adicionou no Facebook e me seguiu no Twitter?
- Porque quis me reaproximar, mas nunca tive coragem de te chamar para conversar. A vergonha não deixava.
- E só me ligou porquê sua mãe estava morrendo!
- Desculpa por isso.
- Eu me sentia muito angustiado nesses últimos meses e sempre pensava em você nesses momentos.
- Comigo acontecia a mesma coisa. Quando você saiu de casa, eu não estava lá você lembra?
- Você acha que eu ia esquecer?
- Eu senti tudo o que você sentiu, sabia?
- Como assim?
- Você foi espancado, mas também doeu em mim. Meu estômago ficou latejando naquele dia.
- Sério?
- Sim! E teve um momento, não me lembro exatamente o ano, que eu fiquei muito mal. Mas mal de verdade. uma tristeza tão grande dentro do meu peito!
Eu não esperava por isso.
- Uma solidão, um vazio, sei lá!
- Aham.
Nós dois suspiramos juntos.
- Você nunca sentiu nada com relação a mim?
- Às vezes. Cheguei a sentir dor no estômago e uma puta dor no tornozelo há um tempo atrás.
- Eu quebrei o pé!!!
- Sério? – me choquei.
- É sim! Bom, na verdade, não chegou a quebrar. Foi apenas uma luxação, mas doeu pra caramba!
Eu não acreditei que a nossa sintonia não morreu durante aqueles 7 anos!
- Se a nossa conexão não morreu, é sinal que a gente ainda tem que continuar a relação. Não acha? Me perdoa? Por favor?
Eu fiquei muito feliz quando ouvi isso e não esperei mais nada. Eu ia perdoá-lo!!!
- Bom, vou te deixar em paz agora – ele caminhou até a porta. – Pensa em tudo o que eu disse, por favor.
Nos olhamos por um longo período. Eu me levantei, chorei, lembrei de todos os momentos em que nós fomos felizes juntos, caminhei e agarrei meu irmão em um abraço de urso que ficou guardado para ele todo aquele tempo.
Chorei que solucei e ele fez a mesma coisa no meu ouvido. Era a primeira vez em muito tempo que eu tinha a minha outra metade junto de mim.
Nosso abraço foi o que faltava para selar a nossa trégua, para selar a nossa volta, para reatar a nossa amizade, a nossa cumplicidade, a nossa fraternidade!
Passei tanto tempo esperando por aquele abraço! Passei tanto tempo pensando naquele menino que eu tanto amava! No meu irmãozinho, no meu gêmeo, na pessoa que dividiu a barriga da minha mãe comigo,
que dividiu a incubadora, que dividiu o berço, que dividiu a mesma casa, o mesmo primeiro dia de aula, a mesma primeira festa de aniversário, as mesmas roupas, os mesmos brinquedos, os mesmos jogos... Tudo!
A mesma felicidade, a mesma tristeza, os mesmos medos, as mesmas angústias... Os mesmos sentimentos.
Para que perder mais tempo longe dele? Para que perder mais tempo sem falar com ele? O Cauã fizera parte de minha vida no passado e eu queria que ele voltasse a fazer no presente e no futuro. Eu ia deixar uma pedra naqueles 7 anos que vivemos longe e iria fazer questão de escrever uma nova história à partir daquele momento!
Eu sabia que ele estava sendo sincero, que estava falando a verdade, que queria reatar a nossa amizade.
O passado era o passado e eu não ia mais tocar naquele assunto! É claro que os 7 anos que vivi no Rio não seriam apagados, muito menos esquecidos, mas a parte em que eu sofri pelo Cauã seria enterrada. Eu não precisava mais sofrer, porque o nosso sentimento, a nossa vontade de ficar um perto do outro acabou falando mais alto.
- Eu queria tanto esse abraço – ele falou, ainda me apertando.
- Não mais do que eu! – continuei chorando.
Não sei quanto tempo nós ficamos unidos, mas sei que foi muito. Se eu quisesse suprir todo aquele time* que nós fomos obrigados a ficar longe, aquel abraço teria que durar dias, meses ou talvez anos.
- Me perdoa, Caio! Me perdoa, por favor?
- Eu te perdoo, Cauã! Te perdoo, porque esse sentimento que nos une, essa conexão que temos, fala mais alto que qualquer outro sentimento ruim, que qualquer mágoa, que qualquer tristeza, que qualquer abalo! Nós somos gêmeos e eu não quero ficar longe de você nunca mais!!!
- Também não quero ficar longe de você nunca mais!!!
Nos apertamos mais ainda.
Já bastava aqueles 7 anos de separação. Eu não queria mesmo ficar longe de meu irmão. Não queria nunca mais ficar longe daquele cara que era meu clone!
Nosso abraço só foi cortado porque o interfone tocou. Quem seria? Eu não estava esperando nenhuma visita. Será que era o Víctor?
- Alô?
- Seu Caio?
- Sim?
- Visita pro senhor.
- E quem é?
- Um moço chamado Rodrigo.
RODRIGO?
- Rodrigo?
- Isso mesmo, Seu Caio.
- Nossa... Deixa ele subir!!!
Como assim aquele cachorro tinha chegado na cidade e não me disse nada? Que históra era aquela?
- É o seu outro irmão?
- Uhum – sequei as lágrimas. – É ele sim. Estou surpreso.
- Não estava esperando?
- Não! Ele mora no Paraná agora.
- Ah, sim! Então eu vou embora pra deixar vocês à vontade.
- Não, fica!
- Eu até queria ficar, mas já está ficando tarde e eu ainda tenho que ir na Ellen.
- Ah...
A campainha tocou. Eu olhei pro Cauã e depois fui atender. O Rodrigo estava lindo do outro lado da porta e ficou simplesmente chocado quando viu o Cauã no meu apartamento.
Ele olhou pra mim, olhou pro meu gêmeo, coçou a nuca e perguntou:
- Quem é o Caio?
- Eu sou o Caio – Cauã e eu falamos ao mesmo tempo.
- Ih... Fiquei confuso!
Eu e Cauã demos risada. Eu puxei meu irmão postiço para dentro do meu apartamento e o agarrei na frente do Cauã mesmo.
- Eu sou o Caio, Digow! Não me conhece mais não?
- Jesus Maria José! Como posso te conhecer se você é o clone dele?
- Deixa eu apresentar. Rodrigo, Cauã, Cauã, Rodrigo.
Eles apertaram as mãos e se fitaram.
- Muito prazer – disse meu irmão de sangue.
- Como vai?
- Bem!
Percebi que o Digão estava retraído. Acho que ele estava com raiva ou com ciúmes do Cauã. Talvez as duas coisas.
Pela primeira vez eu estava vendo os meus dois irmãos juntos no mesmo lugar. O Cauã e o Rodrigo. O oficial e o postiço, mas que de postiço não tinha nada. Rodrigo era tão importante na minha vida quanto o Cauã e vice-versa.
Eu não podia dizer que o meu gêmeo não era importante, porque ele era. Mesmo ele tendo sido um cafajeste no passado, ele sempre foi importante, porque eu não consegui apagar os 16 anos que vivemos um ao lado do outro. Era tempo demais e nem mesmo o Rodrigo foi capaz de substituí-lo por completo.
Por causa disso, eu cheguei a conclusão que nenhum dos dois era maior ou menor que o outro. Cauã e o Rodrigo ocupavam o mesmo lugar na minha vida. Eles eram meus irmãos e ponto final. Não havia diferença entre eles.
- Bom, Caio, preciso ir!
- Tá bom, Cauã! A gente se fala depois.
- Com certeza. Obrigado por tudo, tá?
- Eu é que te agradeço!
A gente se abraçou de novo, mas esse abraço foi mais curto, mas mesmo assim muito bom, muito intenso.
- Eu posso te ligar?
- Lógico – respondi.
- Então até mais. Até mais, Rodrigo.
- Tchau.
Meu irmão saiu e eu fechei a porta. Só então me voltei para o Rodrigo e comecei a brigar com ele:
- Seu cachorro, seu safado, seu peste! Por que você não me avisou que vinha para eu te buscar no aeroporto?
- É porque eu vim rapidinho! Eu vou embora ainda hoje.
- Ué... Por quê?
- Só vim resolver um problema da empresa. Por isso não te falei, mas vem cá, vocês fizeram as pazes, é?
- Sim!!! – eu sorri. – E EU ESTOU MUITO FELIZ!
Agarrei meu irmão com força e quase fiz o coitado cair no chão.
- Me conta como foi esse reencontro, Caio! Estou curioso!!!
Contei como tinha sido o nosso papo e percebi que no decorrer do assunto ele ficou mordido de ciúmes.
- Ô, coisa linda! – abracei o Diguinho. – Não fique com ciúmes! Você é muito importante pra mim, mano! O Cauã nunca vai te substituir, da mesma forma que você nunca vai substituí-lo!
- Mesmo assim eu tenho ciúmes desse garoto! Ele te fez muito mal no passado.
- É verdade, mas de todos, ele foi o que menos me prejudicou. Você sabe disso.
- Nisso você tem razão.
Acabou que nós nos acertamos. Eu prometi ao Digow que nunca o esqueceria e ele me fez jurar que nós não iriamos perder o contato:
- Claro que eu juro! A gente nunca vai parar de se falar, porque eu te amo demais!!!
- Eu também te amo, Cacs! Mas agora eu tenho que ir. Já está tarde e eu ainda preciso voar até o Paraná.
- O que você veio resolver aqui?
- Uns problemas de remanejamento. Deu tudo certo!
- Que bom! Mas deixa eu te levar no aeroporto?
- Não precisa, mano! Eu tenho um táxi à minha disposição.
- Faço questão!
Eu não ia perder a chance de ficar mais alguns minutos com ele, não é? Fiz questão de levar o Rodrigo no aeroporto, mas o voo dele saiu tão rápido que a gente nem teve tempo para se despedir direito. Mesmo assim foi muito bom vê-lo pessoalmente. Ele amou o meu apartamento.
* Time: leia em inglês.
ALGUNS DIAS DEPOIS...
Eu estava falando com meu namorado por telefone e deu pra sentir na voz dele o quanto ele estava feliz pelo começo do 7º semestre de Arquitetura na UFRJ!!!
- Que bom que você está feliz! Eu fico feliz com isso também!
- Pra minha felicidade se tornar completa, só falta você aqui!
- Digo a mesma coisa!
- E aí? Você já se inscreveu no mestrado?
- Já! Vou fazer lá na Fundação Getúlio Vargas!!!
- Que máximo, amor! Olha que incrível: meu namorado mais lindo do mundo vai ser mestre!
- É... E o meu príncipe vai se formar em Arquitetura! Você vai ser o arquiteto mais lindo do mundo!
- Seu bobo – ele riu. – Eu estou tão feliz, tão feliz por estar quase acabando!
- É, amor! Viu só como o tempo passa?
- É verdade. O tempo realmente está passando muito rápido!!!
Bruno estava próximo do final do curso. Só faltavam quatro semestres. Ainda era muito tempo, é verdade, mas perante a duração total do curso, quatro semestres não eram quase nada.
- Amor, tenho que desligar. O meu ramal está tocando.
- Tudo bem, amor! A gente se fala depois então! Um beijo!
- Outro, te amo muito!
- Eu também te amo!
Atendi o ramal e desligaram na minha cara. QUE ÓDIO! Se eu soubesse que iam desligar na minha cara, eu teria continuado falando com meu namorado. Quem teria sido o engraçadinho que fez isso comigo?
Mas fiz bem em desligar a ligação do Bruno, porque poucos minutos depois quem me ligou foi o Cauã. A gente estava se falando de vez em quando e aos poucos, bem aos pouquinhos, nós estávamos nos reaproximando pra valer.
- Pode falar?
- Sim – respondi. – Aconteceu alguma coisa com os gêmeos?
- Não... Não é isso.
- E o que é então?
- Eu queria te fazer um convite!
- Que convite?
- Na verdade não é meu, mas eu vou intermediar porque ela está com vergonha de falar com você!
- Ela quem?
- Nossa mãe! Ela quer saber se você aceita almoçar aqui em casa no domingo?!
- Almoçar? Aí na casa de vocês?
- Isso! Você aceita?
- Ah, não sei se é uma boa ideia não.
- A gente promete que nada de ruim vai te acontecer.
- O Edson não vai estar aí?
- Sim, mas ele não vai falar nada, não vai fazer nada! Eu te dou a minha palavra!
- Sei não, Cauã! Acho que não é uma boa ideia mesmo. Não me sentiria à vontade.
- Dá uma chance pra nossa mãe, Caio! Você não acha que essa é uma excelente oportunidade para vocês conversarem?
- Acho, mas o problema é o Edson!
- Ele não vai fazer nada. Nós já falamos com ele.
- Sendo assim, eu posso pensar.
Almoçar? Na casa da minha mãe? Será que eu deveria???
NO DOMINGO...
Eu cheguei em Higienópolis por volta do meio dia. Ainda estava meio confuso, meio amedrontado, mas ao mesmo tempo decidido a passar por aquele momento.
Depois de muito pensar e depois de falar com todos os meus amigos e também com a Dona Elvira, eu me enchi de coragem e resolvi que era a hora de resolver todos os meus problemas com a minha mãe.
Eu cheguei a conclusão que se eu aceitei o Cauã de volta, eu também poderia aceitá-la. O único que eu não ia aceitar era o Edson. Esse eu não perdoaria mas nem que ele ficasse de joelhos no milho me pedindo perdão. O que ele me fez, nunca conseguiria esquecer.
Toquei a campainha e quem foi atender foi meu irmão. Ele estava usando bermuda, regata e boné. Que relaxo! E eu todo trabalhado no jeans e camisa pólo.
- Olá – falei.
- Oi!
Ele abriu o portão e estendeu a mão. Eu a apertei e senti algo muito esquisito dentro do meu coração. Que coisa diferente!
- Pode entrar. E fica à vontade.
- Tem alguém aí?
- Tem eu, a minha namorada, nossos irmãos e nossos pais.
- O Edson não saiu?
- Não, mas ele não vai falar nada. É uma promessa!
- Então tá bom. Licença!
- A casa é sua!
Essa era uma mentira. Aquela casa não era mais minha há muito tempo.
Eu entrei e senti cheiro de comida no ar. Cauã me levou até a cozinha, onde todos estavam reunidos. Inclusive os gêmeos.
- Filho!!! – minha mãe foi ao meu encontro e quase me beijou, mas ela pensou duas vezes e não o fez. – Que bom que você aceitou o nosso convite!
- Tudo bem, Fátima?
- Muito melhor agora, filho!
Um dos gêmeos estava no colo da minha cunhada e o outro no carrinho. Eu me aproximei, falei um “oi” para Ellen e peguei o coitadinho que estava sozinho no carrinho. Era impressão minha ou ele já estava mais pesadinho?
- Opa... Oi, bebê! – eu beijei e cheirei meu irmão. – Eu não sei quem é você, mas tudo bem!
- Esse é o David, Caio – minha mãe respondeu.
- Como você sabe quem é quem?
- E mãe confunde os filhos por acaso?
Era verdade. Ela me reconheceu quando eu fui visitá-la no hospital.
- Eles têm alguma marca que os diferenciem?
- Não! Que nem você e o Cauã!
- Mas hoje em dia a gente tem algo que nos diferencia – expliquei.
- O quê? Não estou vendo nada de diferente em você a não ser a cor. Você tá meio preto! – meu irmão me analisou.
- É uma tatuagem no tornozelo.
- Sério que você tem uma “tattoo”? E o que é?
- Minha inicial e a inicial do... Bruno.
Todos ficaram calados. Eu não deveria ter falado isso. Coloquei o David no carrinho e peguei o Davi.
- Licença. Oi, Davi!
Eles eram tão lindinhos! Eu estava apaixonado pelos meus irmãozinhos. Como eles eram fofos!
- Essa comida vai demorar muito, mulher? – Edson entrou na cozinha e quando me viu ficou branco da cor de uma folha de sulfite.
Nossos olhos se cruzaram por um breve momento, mas logo em seguida eu voltei a olhar pro Davi. Ele estava tão lindo com um macacão verde!
- Boa tarde – ele falou.
Era comigo? Cauã me cutucou.
- Ah, boa tarde!
Só foi isso que nós falamos naquele momento. Pelo visto, ele estava tentando dar uma trégua entre nossas brigas. Isso era bom!
- Senta, filho! Eu já vou servir o almoço!
- Estou bem de pé – respondi. – Obrigado!
Eu fiquei foi entretido com meus irmãos. Tudo bem que eles não tinham nem quatro meses de vida, mas já estavam umas gracinhas! Eu mal podia esperar para eles começarem a andar e para começarem a falar. Será que eu ia ver tudo isso acontecer?
Obviamente que eles estavam mais pesados. Muito mais pesados. E maiores também.
Nós estávamos em março e eles já tinham feito três meses. David e Davi já estavam com peso e tamanho de um bebê recém-nascido no tempo correto de gestação.
O almoço foi bem tranquilo. Nós comemos em silêncio e eu pude relembrar o tempero de minha mãe, depois de quase 8 anos!
A comida ainda era a mesma. Eu nunca esquecera aquele tempero, aquele sabor de comida de mãe.
Ela fez arroz, feijão, lasanha, salada e carne assada. Tinha de tudo um pouco, mas eu me acabei mesmo foi na lasanha, porque estava suculenta e extremamente saborosa!
- Pega mais um pouco, Caio! – Fátima quis me servir novamente.
- Não, obrigado! Eu já estou satisfeito!
Depois do almoço, a Ellen e o Cauã resolveram lavar a louça, porque a Fátima foi dar de mamar para os meninos e eu fiquei lá, sem saber o que fazer, sem saber o que falar, sem saber como deveria reagir.
Resolvi subir para ver os gêmeos dormindo e foi isso que eu fiz. Cheguei bem devagarzinho no quarto deles e do corredor, vi que meu pai estava deitado em sua cama, assistindo televisão. Ainda bem que ele permitiu a minha entrada naquela casa.
- Posso? – bati na porta.
- Claro! Entra, filho.
Eu entrei e fui ver o que estava acontecendo. A minha mãe estava trocando um deles, mas ainda precisava trocar o outro.
- Posso trocar a fralda dele?
- Claro que pode! Eu ficaria muito honrada se você fizesse isso.
Lógico que eu fiz. Eu fiz porque queria ter aquele momento com meu irmãozinho! Era o Davi, logo o que eu escolhi o nome.
Conforme eu fui fazendo, a Fátima começou a chorar e não foi um choro calmo não. Ela se desesperou tanto que eu fui obrigado a acalmá-la:
- Fique calma! Não chore assim. Olhe a sua pressão!
- Eu estou tão maravilhada com você aqui!
- Tudo bem, mas não chore mais!
Ela se acalmou e colocou meus irmãos para dormir. Eles apagaram rapidinho e depois que dormiram, foi a hora da Fátima e eu colocarmos tudo em pratos limpos. E isso aconteceu justamwnte no meu antigo quarto, onde tudo começou.
- Sabe, filho... Eu tenho tanta coisa para falar para você!
- Eu estou ouvindo!
- Podemos mesmo conversar?
- Eu estou aqui, não estou?
- Não sei nem por onde começar.
- Comece me explicando por que não tentou impedir a surra que seu marido deu em mim.
- Eu tentei fazer isso, Caio – ela já estava chorando de novo. – Eu tentei segurá-lo, mas seu pai estava possuído! Eu não tive forças para segurar aquele homem.
- Hum... Mas você não fez nada pra impedir a minha expulsão também. Qual a justificativa?
- Eu fiz sim! Eu pedi, implorei, supliquei para ele te aceitar...
- Mentira! Você queria me mandar para um padre ou para um pastor!!!
- Não é fácil para uma mãe saber que um filho é gay, filho.
- É, mas eu me senti um capeta, uma aberração, você falando daquele jeito.
- Eu estava muito magoada. Você não confiou em mim, não me contou nada!
- Como eu poderia te contar se você não aceitava? Não aceita até hoje!!!
- Se você tivesse contado, eu poderia ter evitado o que aconteceu.
- Ah, pelo amor de Deus! Vai jogar a culpa do que aconteceu em cima de mim agora?
- Não, Caio! Não é isso. Eu só estou sendo sincera. Você não teve culpa de nada, eu sei disso.
Pensei que ela ia me culpar pela minha expulsão de casa.
- Eu sinto tanto...
- Sente mesmo, Fátima? Sente mesmo? Sente eu ter ido embora? Sente eu ter sido quase morto? Porque depois de 2 anos eu vim aqui, te liguei, pedi um abraço e você o que fez? ME NEGOU!
- E o que você queria que eu fizesse? Eu fiquei 2 anos chorando por você, 2 anos esperando você aparecer, você vir aqui em casa pelo menos pra me ver e você não deu notícias!!!
- Eu ligava!
- Mas mal falava comigo e ligava de dois em dois meses e olhe lá!
- E o que você queria? Que eu desse risada e falasse que estava tudo bem? Se eu liguei, foi porque a minha segunda mãe, a Dona Elvira, pedia!
- Segunda mãe? – ela chorou mais ainda.
- É, Fátima! Minha segunda mãe, porque Deus foi tão bom comigo, que Ele colocou pessoas maravilhosas em minha vida! A Dona Elvira é minha segunda mãe e sempre continuará sendo! Ninguém vai tirar esse posto dela.
- Eu só queria notícias, sabe filho? Eu fiquei 7 anos pensando que poderia acontecer alguma coisa com você naquela cidade horrorosa, que talvez a gente nunca mais se visse...
- Eu também pensei muito isso. Só que o seu filho preferido, o Cauã, sempre me acompanhou nas redes sociais e ele sabia muito bem que eu estava vivo, que estava trabalhando, estudando e que estava feliz. Porque sim, eu fui feliz sem vocês!
- Eu precisava de notícias. Eu fiquei tão louca atrás de você, Caio! Pensei em ir até o Rio para te procurar, pensei em colocar sua foto num jornal como desaparecido, pensei em fazer um apelo em algum programa de televisão...
Ai que hipocresia!
- Quanta hipocresia, né Fátima? Você acha mesmo que eu sou tonto? Você acha mesmo que eu não sei que seu outro filho ficava dando notícias minhas? Eu vi varas e várias vezes o nome dele no meu perfil, porcaria! Eu não sou trouxa, Fátima!!!
- E você acha que eu confiava nessas informações? Você acha que eu confiei em alguma coisa? É claro que não, Caio! Eu precisava de notícias vindas de você, não do Cauã!
- Como se isso fizesse diferença para você.
- Só quem é mãe sabe o que é ter preocupação com um filho. Você sumiu!
- O que você queria que eu fizesse, Fátima? Eu liguei, falei com a madrinha do Cauã e o Edson desligou o telefone na minha cara! Para que ligar para uma família que me odiava?
- EU NUNCA TE ODIEI, CAIO!
- MAS NÃO É ISSO QUE PARECE, FÁTIMA!
- Eu nunca deixei de te amar. Nunca!
- Eu precisava tanto de você por perto, Fátima – comecei a chorar também. – Você sabe o que é procurar um abraço de uma mãe e saber que ela não quer te abraçar? Você sabe o que é isso?
De tudo o que aconteceu, essa era a minha maior mágoa. Ela não poderia falar que eu não procurei, porque eu procurei. Eu fui atrás, eu liguei, mas eu nunca fui bem recebido. Eu nunca fui aceito como queria ser aceito. Eu nunca fui querido como queria ser querido.
- Pior é pra uma mãe negar um abraço para um filho e se eu neguei, foi porque estava muito magoada com você naquela época.
- E eu não, né? E eu não estava magoado? E eu não estou magoado? O que você e o Edson pensam? Que eu não tenho coração? Eu não sou de ferro, Fátima! Eu tenho coração e sou de carne e osso! Vocês pisaram em mim, me machucaram, acabaram com a minha vida! Como você queria que eu voltasse? E se eu voltei depois de 2 anos querendo um abraço, é porque naquele momento eu estava precisando disso! Eu estava carente de mãe e eu não tive mãe!!!
- Só Deus sabe o quanto eu me arrependi de não ter feito isso, filho. Eu precisava desse abraço. Eu preciso desse abraço!
- Não se aproxime – eu recuei. – Eu não quero o seu abraço!
Eu estava muito magoado com ela, muito mesmo. Falar tudo aquilo, foi o mesmo que viver tudo de novo. A ferida estava novamente aberta e a dor era a mesma.
Minha mãe voltou a soluçar e sentou na minha cama. Eu também sentei, mas bem longe dela. E de costas.
- Eu queria tanto ter feito alguma coisa...
- É, mas você não fez!
- Se você tivesse ficado, eu teria enfrentado tudo e todos para ficar perto de você!
- Duvido!
- Eu estou falando sério! Você sempre foi muito apegado comigo e eu senti muito a sua falta. Ainda sinto a sua falta!
- Eu também senti muito a sua falta, mas ela foi suprida pela família que fiz no Rio de Janeiro. Deus colocou anjos no meu caminho. Eu posso ter perdido a minha família de sangue, mas ganhei uma família novinha em folha, que me aceitou e me aceita do jeito que eu sou e sempre serei, porque a minha homossexualidade não é uma fase!
- Eu sei que não é, Caio! Se falei isso no hospital, foi em um momento em que estava abalada psicologicamente. Na época, eu cheguei mesmo a pensar que era uma fase, mas depois eu soube que você sempre foi assim e sempre vai ser.
Silêncio.
- Eu queria te pedir perdão, filho! Perdão por não ter feito nada para te ajudar; perdão por ter sido uma cobra, como você mesmo disse; perdão por não ser a mãe que você merecia, a mãe que você tanto precisava; por não ter te defendido do teu pai; por não ter entrado na frente na hora que ele te bateu...
- É muito tarde pra isso, Fátima. A mágoa está aqui dentro de meu peito!!!
- Eu sei que está, está no meu também. A sua dor é a minha dor, filho! Mas, eu preciso do seu perdão para seguir a minha vida!
- Sabe quanto tempo eu fiquei esperando ouvir isso? Quase 8 anos!!!
- Eu sei, meu amor... Meu lindo... Meu pequeno... Me perdoa...
Eu chorei demais nesse momento. Minha mãe sempre me chamava de “meu pequeno”. Eu daria a alma para ouvir aquilo quando tudo aconteceu!
- Filho, eu não me importo com a sua sexualidade. Eu não ligo para nada disso mais. O tempo me fez ver que não é o credo, não é a cor, não é a orientação sexual que vai mudar as pessoas. Sei que passaram-se muitos anos, que talvez seja um pouco tarde, mas o milagre da vida nos reaproximou! Os seus irmãozinhos nos aproximou...
Era verdade, Nisso ela tinha razão.
- E talvez esse seja o momento da gente tentar se aproximar de novo. Eu não peço que você volte pra casa, não peço que me ame como mãe porque eu sei que eu não fiz o papel de mãe; eu sei que você tem todo o direito de me odiar, mas independente de tudo, eu continuo te amando como meu filho. Eu só peço que você me perdoe. Só isso.
Chorei mais ainda.
- Você nunca vai deixar de ser o meu pequeno, mesmo estando aí, com quase 25 anos! Formado, bem de vida e independente. Você continua sendo meu menininho, aquele que vivia grudado na barra da minha saia!
“- Vai brincar com seu irmão e seu pai, Caio! Me deixa lavar a louça em paz!
- Não – eu abracei as pernas dela e olhei pra cima. – Eu quero ficar com você!
- Mamãe está ocupada, meu filho!
- Eu não vou te atrapalhar – prometi. – Deixa eu ficar aqui com você?”.
- Eu peço perdão porque preciso tirar esse peso de minha consciência. Sei que você perdoou o seu irmão e sei também que são pesos e medidas bem diferentes. Ele não fez contigo o que eu fiz, mas não posso negar que tenho esperança de um dia te ouvir me chamar de mãe novamente.
Ela chorou muito.
- Ninguém nasce sabendo de tudo, Caio – Fátima fungou ao mesmo tempo que eu. – E eu não sou santa. Tenho os meus erros. Errei muito com você, meu filho, mas eu te peço desculpas com o meu coração aberto. Me perdoe, meu filho. Me perdoe para que eu possa continuar viva por mais alguns anos, porque essa dor que existe no meu peito está me matando aos poucos!!!
Eu parei para refletir. Ela errou, mas eu também errei. Eu poderia ter procurado mais e se não fiz isso, foi porque sempre fui orgulhoso.
- Não me deixe morrer sem antes você me perdoar...
Fiquei calado.
- E se você não me perdoar, acho que teria sido melhor morrer naquele parto; porque eu fiz tudo pensando em você. Se eu batalhei pela vida, foi por sua causa; porque te amo, te aceito, te quero de volta nos meus braços; antes que eu morra.
- Você não vai morrer!!!
Eu subi naquela cama e caí nos braços da minha mãe e nem sei porque fiz isso, mas sei que eu chorei demais ouvindo aquelas palavras.
Eu não tinha cabeça, não tinha razão, não tinha coerência para pensar naquele momento. Tudo o que eu queria e mais precisava, era dela, da minha mãe.
- Me perdoa, meu filho?!
Só naquele momento eu entendi o que ela passou naqueles anos. Entendi que ela também sofreu, que também sentiu a minha falta e que se não foi me ver, se não foi dar o abraço que eu pedi, foi porque o meu orgulho não deixou isso acontecer.
Eu tinha culpa também naquela história. Eu sei que na hora da raiva, na hora do ódio, a gente fica cego, mas naqueles mais de 7 anos que vivi no Rio, eu tive tempo suficiente para procurá-la e isso eu quase não fiz.
Eu tinha duas mães novas e isso era fato, mas infelizmente a Fátima não podia ser substituída. Ninguém poderia ocupar o lugar da minha mãe de sangue. Ninguém.
Por mais cobra que ela tivesse sido no passado, ela continuava sendo a minha mãe e continuava me amando como filho, embora fosse um amor um pouco peculiar, mas não deixava de ser amor.
- Toda vez que o telefone tocava, eu pedia a Deus para que fosse você, filho...
Nós ainda estávamos abraçados. Como eu queria sentir aquele calor novamente, como eu queria sentir aquele cheiro novamente, aquele cheiro irreconhecível! O cheiro da MINHA mãe.
Naquele momento, eu me senti tão vulnerável! Eu não me sentia mais um homem feito, formado, com carro, com casa e que ganhava bem. Eu me sentia o mesmo menininho que corria pros braços dela quando meu pai queria me bater, o mesmo menino que ia correndo pros braços dela depois da escola, o mesmo menino que fazia cartões para o dia das mães, o mesmo menino que a defendia quando meu pai brigava com ela...
Eu tinha nascido dela. Ela me deu a vida e eu estava tirando a vida dela. Como eu poderia fazer isso?
Diante do amor de uma mãe por um filho e de um filho por uma mãe, tudo fica tão insignificante, que naquele momento não existia nada que nos separasse. Eu ainda estava com muita mágoa dela, era verdade, mas isso não era quase nada perto do amor que eu estava sentindo de novo por aquela mulher.
Minha mãe! Minha! E isso ninguém ia tirar. Ela errou no passado sim, mas estava disposta a corrigir seus erros, a recuperar o tempo perdido e eu não poderia me dar ao luxo de ficar mais 7 anos sem ela. Não poderia me dar ao luxo de perder aquela oportunidade. Talvez fosse a única que nós tivéssemos.
- Eu te amo tanto, Caio... Meu filho...
Continuei calado, apenas abraçado com ela, apenas chorando. Eu ainda tinha muito o que perguntar, queria saber como foram aqueles 7 anos, como ela fez pra salvar a nossa casa, o carro deles...
- Me conta como foram esses 7 anos em que vivi longe daqui?
- Horríveis...
Não houve nenhuma mudança na vida da minha família naqueles 7 anos. Meu pai continuava trabalhando nas mesmas empresas, continuava ganhando a mesma coisa, mas ele ficou no fundo do poço por causa de jogatina e bebida.
- Ele parou de beber?
- Parou. Depois que o Cauã ameaçou sair de casa ele parou.
Ah! Quer dizer que se o Cauã saísse, ele parava de beber? E se eu saísse ele bebia pra comemorar? Legal!
- Seu pai ficou devendo muito dinheiro para agiotas. Nós quase perdemos tudo. Quase fomos morar debaixo da ponte! Eu tive que dar um jeito com seu irmão. Fui trabalhar com ele e consegui pagar todas as contas.
- E essa gravidez? Ela não foi mesmo planejada?
- Não, filho. Eu pensei que era menopausa e fui na médica pra fazer meus exames de rotina. Quando menos esperei ela veio com a notícia que eu estava grávida. Foi um choque para todos nós!!!
- Imagino que choque maior tenha sido quando soube que eram gêmeos e que eram dois meninos, não?
- Sim. Foi muito difícil aguentar essa bomba, mas foi a forma que Deus encontrou de nos reaproximar.
Fiquei calado.
- Você está tão lindo, filho!
- Ué... Continuo a cara do Cauã!
- Você é totalmente diferente do seu irmão, Caio! Você é único e eu consigo enxergar essas diferenças há léguas de distância.
Fiquei calado de novo.
- Eu queria tanto ter visto você crescer na vida, ter visto você se tornar o que se tornou!
- Foi muito difícil chegar onde eu cheguei.
Eu contei para minha mãe como foi a minha vida no Rio de Janeiro. Contei da Dona Elvira, contei do Rodrigo, da Dona Inês, de todos os meus outros amigos e é claro, do Bruno.
- Mas dele eu prefiro não falar.
- Não, filho! Fala! Eu quero conhecer um pouco do meu genro!
Meu genro... Eu nunca pensei que iria ouvir a minha mãe falando desse jeito! Eu contei um pouco dele e mostrei uma foto no meu celular. Ela gostou:
- Ele é lindo!
- É sim – eu me derreti todo.
- Quero conhecê-lo um dia. Você me apresenta?
- Se ele quiser, quem sabe?
Aparentemente estava tudo bem entre nós dois, mas eu ainda tinha o meu coração cheio de mágoas. Em nenhum momento eu falei que a perdoei, mas também não disse que não ia perdoá-la. Eu acho que só precisava de um tempo.
Tempo. Mais uma vez o tempo. Quantas vezes eu precisei dele para pensar? Para colocar a cabeça no lugar? Ou até mesmo para resolver problemas com meus amigos ou com meu namorado?
Naquele momento eu dependi mais uma vez do tempo, porque somente ele seria capaz de dizer se as mágoas da minha mãe sairiam do meu coração ou não. É... É como dizem por aí: o tempo é o senhor da razão!
- Filho? Posso te pedir uma coisa muito importante para mim?
- Pode sim.
- Deita no meu colo?
Eu hesitei em um primeiro momento, mas o colo dela estava tão convidativo, que eu acabei topando.
Deitei a cabeça no colo de minha mãe e nós nos olhamos depois de muito tempo. Ela continuava linda, embora o tempo tivesse passado. Minha mãe ainda era a mesma mulher de fibra do passado, um pouco amadurecida e com a mente mais aberta, mas ainda era a mesma manteiga derretida de sempre.
- Eu prometo – ela falou – que nunca mais vou deixar ninguém encostar um dedo em cima de você.
Eu queria ouvir isso no passado!
- Eu prometo – ela continuou, já com os olhos marejados – que seu pai nunca mais vai gritar com você.
Eu chorei.
- Eu prometo que eu vou ser a mesma mãe de antes. Eu te aceito, meu filho!!! Eu quero você de volta, meu pequeno...
Ela também chorou.
- Eu te amo, meu pequeno!!!
- Eu... Também te amo... Mãe...
Alguém estava batendo na porta. Será que era meu pai? Ou meu irmão? Eu saí do colo da minha mãe e ela pediu que a pessoa entrasse. Era o Cauã mesmo.
- Eu posso?
Apenas assenti.
Meu irmão estava com os gêmeos. Eles estavam no carrinho. Onde estava a Ellen?
- A Ellen já foi? – perguntou minha mãe.
- Já sim.
Eu estava me sentindo esquisito. Eu fazia de novo parte daquela família? Era isso?
O meu gêmeo se aproximou e sentou ao meu lado. Eu fiquei lá, entre ele e a nossa mãe, com meus irmãos gêmeos na minha frente. Nós cinco estávamos juntos. Eu estava de volta no seio da minha família, depois de quase 8 anos, mas não era mais o mesmo garotinho que descobriu a homossexualidade aos 11 anos de idade.
Eu estava amadurecido, tinha 24 anos e era independente. Eu estava ali sim, tinha perdoado o Cauã e estava em processo de perdão com a minha mãe, mas eles sabiam que não podiam pisar no meu calo. E sabiam que eu tinha outra família, a família que fiz no Rio de Janeiro, a minha família do coração, a família que eu mesmo escolhi.
Eu resolvi que daquele dia em diante eu não pensaria mais no passado. Daquele momento em diante, eu apenas pensaria no futuro e viveria o presente. A minha história com eles no passado não deu certo, mas dependia somente de nós que ela desse certo no futuro.
E talvez desse. Era só a gente fazer tudo diferente, para a nossa história ter outro final. Será que seria assim???
Era fato que Cauã e Fátima erraram comigo no passado. Eles erraram, mas o erro deles foi muito superficial perto do erro de meu pai. Ele sim que não perdoaria jamais.
Aquele foi o primeiro passo de uma nova caminhada e eu estava torcendo para que essa caminhada fosse diferente. Da minha parte seria, disso eu tinha certeza.
Foi aos 11 anos que eu descobri a minha orientação sexual; foi aos 11 anos que eu descobri que era gay, mas só foi aos 24 que eu consegui resolver todos os meus problemas familiares relacionados a esse assunto.
13 anos se passaram, mas eu sabia que teria muito mais de 13 pela frente para eu ser feliz ao lado dos meus irmãos e da minha mãe. E que fosse assim. Seria assim. Já estava sendo assim.
Eu só precisava acreditar, confiar e perseverar. Mais uma vez eu tinha que ser perseverante, como fui naqueles últimos 7 anos que passei longe de minha família biológica.
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