sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Capítulo 61

N
ão!
É claro que a gente não podia conversar. Conversar para quê? O que ele queria me falar? Qual seria a desculpa que ele ia dar daquela vez?
Não! Não, não e não! De jeito nenhum...
Não pensei duas vezes em sair do MSN e abandonar a rede mundial de computadores!
- Que cara é essa, garoto? – meu amigo perguntou.
- Ele me chamou, você acredita?
- E está falando com ele?
- Lógico que não!
- Ah, sim. Se ele chamou é porque quer se explicar, né?
- Problema é dele! Agora é tarde e atrasado. Não quero mais saber desse idiota!
- Estou gostando de ver, é assim que se fala! Será que ele ainda está na Espanha?
- Não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Por mim ele pode estar no fim do mundo que ainda está perto de mim. Quero é distância!
- Nossa, nunca te vi com tanta raiva assim!
- É assim que eu fico quando fico com raiva de alguém. Portanto, nunca me irrite.
- Bom saber. Posso usar de novo?
- Pode e deve. Não quero ver esse notebook tão cedo!
- Dá ele pra mim então?
- Faça bom proveito.
Eu já considerava aquele notebook meu e do Rodrigo. Ele nunca foi totalmente meu e eu nunca me importei em dividí-lo. Que ele usasse quando quisesse!
- Brincadeira, Caio. Ele é seu e eu só vou pegar emprestado.
- Ele é nosso. Enquanto morarmos debaixo do mesmo teto, ele será nosso.
- Você é um amigão!
- Obrigado, você também é.
Pelo visto a raiva que ele estava sentindo de mim já tinha acabado.
- Não está mais bravo comigo? – perguntei quando fiquei um pouco mais tranquilo.
- Não.
- Que bom. Posso saber por que você ficou tão esquisito naqueles dias?
- Sinceramente? Acho que era carência mesmo. Como coloquei o tesão em dia ontem, já estou de boa de novo. Desculpa se eu fui chato com você.
- Eu também fui chato com você. Está tudo certo!
- É, está sim...
- E o bebê da sua irmã, como está?
- Uma graça! Pesando 5 quilos já!
- Tio coruja...
- Muito!
- Será que um dia eu vou ser tio? – pensei alto.
- Provavelmente, né Caio? Você tem um irmão e um dia ele vai casar, constituir uma família... A não ser que ele vire padre ou não queira casar...
- Impossível aquele traste virar padre. Ele é muito mulherengo.
- Quem sabe você já não é tio? Ou pode ser que seja em breve... Faz mais de um ano que não fala com ele!
- Será?
Será que eu já era tio? Será que a minha família tinha aumentado e eu não estava sabendo?
- Acho que não. Meu irmão é mulherengo, mas não é burro. Ele deve encapar a bagaça...
Rodrigo deu risada. Eu estava sentindo saudades do Cauã!
- Vou fuçar no perfil dele, posso?




- Fica à vontade. E aproveita e me conta as novidades. Eu não tenho coragem de fuçar!
- Porque é bobo. Eu fuçaria se fosse você. Isso demonstra que você está preocupado com ele.
- Não estou preocupado. Sinto falta dele.
- Vocês brigavam muito?
- Pra caramba. Desde pequenininhos. Acho que até na barriga da nossa mãe a gente brigava.
- Da hora.
- Da hora nada! Maior porre ter irmão gêmeo.
- Se você diz – ele deu de ombros.
- E aí, o que tem de novo por aí?
- Ele mudou a foto do perfil, mudou o texto também... Colocou umas fotos... Nada de anormal. Ele sabe andar de skate?
- Sim. Aliás, eu também sei! Por quê?
- Tem uma foto de skate aqui.


- Deve ter ganhado do nosso pai. Tudo que ele pede nosso pai dá.
- Hum. Sua família é rica, é?
- Não! Claro que não! Estamos longe de ser ricos. Eles só vivem confortavelmente.
- O que seu pai faz?
- Meu pai tem dois empregos. Pelo menos ele tinha até eu sair de São Paulo. Ele tem uma agência de publicidade e ao mesmo tempo trabalha como diretor em uma empresa não muito conhecida lá da minha cidade.
- Porra, que chique! E ainda fala que não é rico!
- E não sou mesmo. Olha onde eu moro! – brinquei.
- Verdade. Coitado, família toda cheia da grana e você morando aqui.
- Minha família não é cheia da grana, menino! Eles não têm luxo nenhum. Só temos uma casa própria, um carro e nada mais. Coisas muito simples.
- Hum... Entendi!
- E vamos mudar de assunto? Não quero ficar pensando neles não.
- Beleza! Acho que eu vou dormir. Estou cansado ainda...
- Depois dessa eu perdi o sono.
- Cala a boca, Caio! – ele deu risada. – Você dormiu a tarde toda!
- Olha quem fala!
- Mas eu acordei primeiro que você.
- Não justifica.
- Justifica sim! Cheguei depois e acordei primeiro.
- Mas provavelmente dormiu no motel, né?



- Claro que não, moleque! Quem em sã consciência iria dormir em um motel? Por favor, né?
Caí na gargalhada.
- Por acaso você e os meninos foram no mesmo?
- Sei não. A gente se separou, né? Já disse que não curto esses lances de suruba.
- Deve ser muito da hora...
- Cala a boca, Caio. Cala a boca e me deixa dormir.
- Você nem parece hetero, sabia?
- Ué? Por que não?
- Porque normalmente todo hetero curte essas paradas aí.
- Não curto não. Cama pra mim tem que ser comigo e uma gatinha. Nada mais.
- Nem se fosse com duas?
- Aí a figura muda. Aí pode ser... Pode ser duas, três... – ele mordeu os lábios.
- Ah, tá! Até parece que você daria conta – brinquei.
- Não duvide da minha potência, seu infeliz!
- Duvido sim! Não ia dar conta mesmo.
- Ah, se eu pudesse te provar...
- Como é?
- Não, não! Não quero provar você! Quero provar PRA você que eu dou conta!
- Qual é, Rodrigo? Tá querendo me pegar, é?
- Está louco? Bebeu? Fumou? Deus me livre!!!
Ri muito com o meu amigo. Eu estava sentindo falta desses momentos de descontração.
- Brincadeira – falei. – Não queria que você me pegasse não. Entre nós é só amizade.
- Acho bom!
- Você não faz meu tipo.
- Nem você o meu. Falta algo no meio das suas pernas.
- Você até tem, mas deve ser pequeno e eu gosto é de coisa grande!
- Filho da puta! Cala a porra da sua boca, vai? Não quero saber dessas putarias aí não...
- É pequeno! É pequeno mesmo...
- Pequeno é o caralho!
- É o caralho mesmo – ri de novo.
- Não é pequeno porra nenhuma! – Rodrigo garantiu. – Curioso!
- Não? E quanto mede essa minhoca? – investiguei.
- Não é da sua conta, curioso!
- 10 centímetros?
- 10 centímetros mole... Tá doidinho pra ver, né? – ele colocou a mão direita no meio das pernas.
- Não. Já disse que é só amizade, não insista.
Ele deu risada e jogou um travesseiro em cima de mim.
- Palhaço! Todo brincalhão hoje.
- Estou feliz – suspirei. – Embora tenha me estressado agora há pouco.
- Esquece esse moleque, Caio.
- Já esqueci. Ele que me procurou!
- Acho bom.
- Acho que está na hora da gente fazer uma faxina nessa casa... Daqui tá dando pra ver o pó da sua cama.
- É também acho! Precisamos mesmo fazer uma faxina das boas.
- 6 homens juntos não dá muito certo. A casa fica toda bagunçada. Principalmente os quartos.
- Não exagera, Caio! Nossa casa é limpinha. A gente não deixa ela ficar muito suja não!
- Sei. Esses dias o banheiro tava um nojo.
- Banheiro é banheiro! Por isso que tem que lavar todos os dias.
- Haja conta de água.
- Prefere que o banheiro fique igual ao de uma estação de ônibus?
- Deus me livre!
- Então não reclama. A propósito, você não pode reclamar mesmo porque já tem emprego.
- Isso é, mas tenho dó de ficar gastando meu rico dinheirinho com essas coisas.
- Prefere voltar a morar naquela espelunca que morava antes? Se quiser a porta da rua é serventia da casa!
- Que horror, você está me expulsando? Logo você que me convidou?
- É você que está reclamando!
- Reclamo mesmo, a boca é minha!
- Como você é bobo, Caio – ele deu um bocejo. – Posso dormir agora ou você vai continuar tagarelando que nem um papagaio com cólica menstrual?
Cólica menstrual? Eu não sabia que papagaio menstruava...
- Como você vai dormir com esse computador no colo?
- Já estou desligando, palhaço. Hoje você não perdoou uma, hein?
- Estou ligado na 220!
- 220? Diria 330, 440...
- Exagero!
- Aham. Boa noite.
- Boa noite, parceiro. Dorme bem e sonha comigo, tá bom?
- Vou sonhar sim. Vou sonhar que eu estou te empurrando de um precipício e que você nunca mais vai me encher o saco!
- Também te amo, beijo!
Fiquei calado por um minuto. Apenas um minuto.
- Seu idiota – dei risada comigo mesmo.
- O que é dessa vez? Quem te deu o direito de você me xingar desse jeito?
- Seu besta! Papagaio não pode ter cólica menstrual porque papagaio é papagaio e não maritaca!
- Jura que você pensou que era verdade?
Cocei a cabeça.
- Você confundiu a minha cabeça!
- Cara... – ele me olhou com seriedade. – Você é lesado! Puta que pariu...
- Lesado é o senhor seu avô, seu panaca! Faz favor de me respeitar, hein?
- Não... Depois dessa eu tenho que dormir mesmo. Boa noite, tapadão. Não fale mais nada, senão coloco durex na sua boca.
- Nossa... – fingi ficar ofendido. – Faria isso comigo?
- Se você falar mais um “a” eu colo é com “Super Bonder”!
- Malvado!
- Cale-se. Me deixe dormir que eu estou cansado.
- Mole!
- Shiu.
- Chato!
- Cale-se.
- Não!
- Vou costurar sua boca em 3, 2, 1...
- Duvido você fazer isso.
- Fecha o bico, meu filho... – ele choramingou.
- Não e não – brinquei.
- Acho que vou sonhar que vou te derrubar em um vulcão, é melhor...
- Credo!
- Só assim você iria calar essa... – ele bocejou – boca.







Os três dias que se passaram foram os mais tristes desde que eu tinha começado a trabalhar naquela loja. O clima de despedida era tamanho que as pessoas quase não estavam se falando e tudo piorou no final do expediente do dia 31 de janeiro.
- Não quero chorar – Sabrina já estava com a voz embargada –, mas acho que não vou conseguir.
- Não vai conseguir mesmo – Gabo se aproximou e fez as honras da casa. – Nós te compramos isso.
Todos os funcionários contribuíram para a compra de uma cesta enorme de chocolates. A nossa ex-gerente quase caiu do salto quando viu o tamanho do nosso presente.






- Querem me engordar? – ao invés de ficar feliz, ela pareceu brava. – Quem eu mato primeiro?
- A ideia foi do seu queridinho – disse o Lucas.
- Não tenho queridinhos, Lucas. A ideia foi sua, Gabriel?
- Aham. Não gostou?
- Vou colocar seu nome nas minha orações se eu engordar muito, viu?
A gente deu risada,
Ela passou agradecendo e se despediu de todos nós. O mesmo aconteceu com os demais funcionários que iam mudar de loja. Só quem iria ficar seríamos eu, o gostosão do Gabriel, o Fabrício, a Saionara e o chato do Lucas.
- Queria tanto que o Lucas fosse pro inferno, mas que saísse dessa loja – comentei com o Fabrício.
- Paciência! O jeito é aguentar esse veadinho.
- Haja saco!
- Meninos – ela se aproximou. – Tenho uma notícia importante para vocês.
- Qual seria? – a japonesa perguntou.
Eu sempre tive dúvidas se a Saionara era japonesa, coreana, chinesa ou qualquer coisa do tipo. Só sabia que ela era “ching-ling”.
- Vocês ganharam um novo gerente. Não é mais quem eu havia falado, ela saiu da empresa.
- Hã? Por que?! – o Gabriel achou estranho.
- Porque arrumou outro emprego que vai ganhar mais. Agora quem vem é o Ivan. Vocês não o conhecem, mas ele é muito gente fina.
- Finalmente um gerente homem nessa loja – a Saionara comentou.
- E ele é uma delícia, amiga – Sabrina riu. – Pena que é casado e muito bem casado.
- Isso não é problema, chefinha – a garota brincou.
- Olha, olha, hein? Não vai dar em cima do gerente, menina!
- Se ele for gato...
- Eu acho. Vai de gosto.
- Vocês podem mudar de assunto, por favor? – Gabriel reclamou.
- Ah, vocês estão aí? – Sabrina brincou. – Brincadeiras à parte, a história é séria. Quem vem é o Ivan e vocês precisam saber trabalhar com ele.
- Por que? Ele é chato? – Lucas indagou.
- Não é questão de ser chato, ele é rígido! Portanto senhor Lucas, cuidado com suas brincadeirinhas idiotas, hein?
- Oi?
- Isso mesmo que você ouviu! Fiquem bem espertos.
- E quem mais vem, chefe? – Fabrício quis saber.
- Ai, vem muita gente. Muita mesmo, mas eu não lembro o nome de ninguém.
- Fizeram a faxina, hein? – Gabo comentou.
- Algo que foi muito necessário. Agora eu preciso ir e vocês também. Muito obrigada pelo presente e se eu engordar, eu coloco o nome de vocês na boca do sapo, hein?
Até me arrepiei com essa brincadeira.
- Tá amarrado! – repreendi.
- É brincadeirinha, Caiô! – ela riu.
- Eu sei, Sabriná!
Por fim nós nos despedimos e ela caiu no choro mesmo. Foi um clima triste, mas eu não fiquei emotivo.
- Obrigado por tudo – agradeci.
- Disponha! Você vai longe, acredite.
- Assim espero.
- Vamos, Caio? – Fabrício me chamou pela segunda vez.
- Vamos, apressado! Vai tirar o pai da forca?
- Preciso da minha cama, só isso.
Quando a gente chegou na loja na manhã seguinte, o clima já era outro. Todos estavam descontraídos, alegres e cheios de expectativas.







- Cadê o novo gerente? – ouvi o Lucas perguntar para si mesmo. Com certeza já estava empolgado para conhecer a carne nova do pedaço.
Mas o Ivan não era nada do que eu tinha imaginado. Queria saber onde a Sabrina achou aquele cara bonito! Só se fosse na conta bancária...
- Você é o? – ele apertou a minha mão.
- Caio!
- Olá, me chamo Ivan. Muito prazer.
- Prazer é meu.
O homem batia no meu ombro. Deveria ter 1m20cm de altura! Fiquei totalmente decepcionado.
- Baixinho, não? – comentou Gabriel.
- Né? Meu primo de doze anos deve ser maior – falou Fabrício.
Além de baixo, ele era barbudo. A única coisa que salvava era o sorriso que era perfeito. Ele não tinha nenhum dente torto e eram todos muito alvos.
- Esse é meu gerente? – a decepção na voz do Lucas era evidente.
- Você é quem?
- Lucas – ele suspirou.
- Olá... Muito prazer.
- Aham!
Só quem ficou animada foi a japa girl.






- Saionara, muito prazer.
- Prazer é meu.
Se antes eu não lembrava o nome de ninguém, daquele momento em diante esqueci até do meu.
Eram tantos funcionários novos que eu fiquei totalmente perdido e confuso. Não havia nenhum gatinho no pedaço, todos os caras que entraram na loja não me chamaram a atenção.
- E aí? Curtiu alguma gatinha? – Gabriel perguntou.
- Não e você?
- Como não, Caio? Como não?! Uma melhor que a outra, meu parceiro!
- Ah, ainda não prestei atenção para falar a verdade. Hoje estou no mundo da lua!
- Onde é que já se viu você não analisar as novatas? Só sendo muito sonso mesmo!
- Me respeita, faz favor?
- Lesado! – ele bagunçou meu cabelo, mas rapidamente coloquei os fios no lugar.
- Cabelo liso da porra!
- Ah, não é minha culpa. Nem gel segura aqui.
- Percebi que você nunca arrepiou os cabelos!
- Não é porque não quero, é que nem gel segura. Só se colocar muito e aí fica zoado porque dá caspa e eu não curto.
- Já o meu nem precisa de gel. Ele é duro por natureza – o cara sorriu.
- Besta! Seu cabelo também é liso.
- Não tanto quanto o seu.
Não sei se era impressão minha, mas aparentemente o Gabriel estava mais bombado. Será que eu estava ficando louco?
- Deixa eu te perguntar uma coisa, onde você malha?
Ele disse o nome da academia e eu me surpreendi, porque era onde eu treinava na época que trabalhava no Call Center.
- Já treinei lá! Quem é seu instrutor?
- O Felipe. Conhece?
- Mentira? Ele era o meu instrutor!
- Sério mesmo? Coincidência, né?
- Demais! Manda um salve pra ele, por favor.
- Pode deixar!
Eu estava com saudade do gostosão do Felipe. Ele não era lá muito bombado que nem o Gabriel, mas tinha um corpo lindo e em ordem.
Acho que pela primeira vez pensei em perguntar se o Biel usava bomba. Ele estava com os braços grandes demais e aquilo não era normal...
O Gabriel era o típico cara “parafuso”. Grande em cima e fino em baixo. Não que ele não malhasse as pernas, mas o tronco estava visualmente desproporcional. Ele era lindo, muito lindo de rosto e de corpo, mas aquela desproporção o estava deixando no mínimo esquisito.
- Vamos trabalhar que a gente ganha mais, né?
- Certeza!
Nesse primeiro dia de mudanças foi difícil acostumar com o ritmo do novo gerente. Ao contrário do que a Sabrina disse, o Ivan me pareceu tranquilo. Ou será que ele era um lobo em pele de cordeiro?
- Que tanto você me olha, Caio? – Gabriel perguntou perto do fim do expediente.
- Posso te fazer uma pergunta indiscreta?
Ele ergueu as sobrancelhas.
- Depende... Manda aí, vai!
- Você usa bomba?!
- Hã?! Claro que não, Caio! Por que a pergunta?
- É que parece que seu corpo está maior nesses últimos dias. Sei lá!
- Impressão sua, meu... Não uso esse negócio não, senão o berimbal não funciona!
Abri um sorriso. Eu não confiei muito naquela história, mas...
- Ah, saquei. Desculpa a indiscrição, mas isso estava preso na minha garganta.
- Tranquilo, pensei que fosse coisa pior!
- O que pode ser pior que isso?
- Deixa pra lá. Até amanhã, brother.
- Se cuida.
Como o Gabriel, o Fabrício e eu não íamos embora no fechamento da loja, eu encostei em um dos caixas e fiquei esperando meu amigo chegar. Enquanto isso, fiquei trocando ideia com uma das novas funcionárias, cujo nome eu não me lembrava.
- Como você se chama mesmo? – perguntei.
- Janaína. E você?
- Caio.
- Cansou, Caio? Já está indo embora?
- Já! Meu expediente já acabou, só estou esperando meu amigo para a gente ir.
- Quem é seu amigo?
- O Fabrício. Conhece?
- Só de vista. Ainda não tive tempo de conversar com ele.
- Ele é muito gente fina, vocês vão se dar bem.
- Que bom!
- A propósito, ele está demorando demais. Vou subir e procurá-lo. Até amanhã, moça. Bom término!
- Obrigada! Bom descanso.
- Valeu...
Eu fui quase que correndo até o vestiário e assim que entrei no local, percebi que o Fabrício não estava lá. Onde será que ele havia se metido?
- Fabrício? – chamei.
- Aqui, Caio!
Como eu suspeitava, ele estava em um dos banheiros.
- Que demora é essa?
- Estou com dor de barriga, vou demorar um pouco! Pode me esperar?
- Ah, tudo bem... Desculpa, não sabia que você está passando mal...
- Relaxa. Eu já vou sair.
- Beleza, eu vou estar lá na frente dos caixas.
- Tudo bem!
- Não vai embora? – perguntou Janaína.
- O Fabrício está terminando de fazer umas coisas, vou esperá-lo aqui.
- Ah, sim!
- Te atrapalho?
- Claro que não! Nem está tendo movimento.
- Você veio de qual loja?
- Lá da de Duque de Caxias. E você?
- Eu sempre trabalhei aqui. Sou novo ainda.
- Ah, entendi. E gosta daqui?
- Por enquanto não tenho do que reclamar e você?
- Eu gosto. Dá para sobreviver, né?
- Ah, claro!
- Tudo bem aí, meninos? – Ivan se aproximou.
- Tudo – respondemos ao mesmo tempo.
- Não tem nada para fazer, Caio?!
- Já terminou meu expediente, estou esperando meu amigo para a gente ir embora.
- Já passou o crachá?
- Sim!
- Então, por favor, saia da loja. Se seu expediente acabou você não pode ficar aqui dentro.
- Como é? – eu estranhei.
- Melhor você não ficar aqui para não atrapalhar as meninas. Tudo bem?
- Ele não está me atrapalhando, Ivan – Janaína revirou os olhos.
- Mesmo assim. Espere seu amigo lá fora, por favor.
Eu olhei no fundo dos olhos do gerente e achei aquela atitude no mínimo esquisita, mas quem era eu para discutir com o chefão?
- Como quiser, Ivan. Até amanhã, Janaína.
- Até, Caio! Se cuida.
- Você também.
- Boa noite, Caio! Bom descanso – Ivan deu um tapinha no meu ombro.
- Igualmente.
Só por aquela atitude ridícula eu já passei a detestá-lo. O que eu podia esperar de um cara que não deixava os funcionários à vontade?
- Você não ia me esperar em frente aos caixas? – ele se queixou.
- Ia. Disse certo. O Ivan me expulsou de lá, acredita?
- Sério?
- Sério! Fiquei revoltado. Ele é um nojo!
- Calma, Caio! É o primeiro dia do cara... Não julga antes de conhecer.
- Ah, só pelo o que ele me fez já estou odiando. Você se sente bem?
- Mais ou menos. Eu quero ir ao médico, você me acompanha?
- Sim! É longe daqui?
- Nada. Duas quadras a pé. Rapidinho.
- Então vamos logo! Vai que acontece algum acidente no caminho...
- Besta.
Mas não aconteceu nada. Embora Fabrício não estivesse se sentindo bem, ele não precisou ir ao banheiro até a gente chegar no pronto socorro do convênio médico que utilizávamos.
- Só aguardar em frente ao consultório 7. Chama pelo nome – disse a recepcionista.
- Muito grato – ele recolheu a carteirinha e a guardou dentro da carteira.
- Onde é esse consultório? – perguntei.
- Na segunda porta à esquerda – ele me conduziu.
O corredor estava abarrotado de gente. Será que ia demorar muito?
- Caio, na boa, eu não vou aguentar esperar não. Fica aqui, se o médico me chamar você entra e fala que eu fui ao banheiro, beleza?
- Fechou. Corre lá...
- Valeu, parceiro!



Enquanto ele foi ao banheiro eu fiquei assistindo o “Jornal Nacional”. Fazia um tempão que eu não parava para assistir televisão.
- Fabrício? – ouvi uma voz feminina chamar pelo nome do meu amigo de dentro do consultório.
Eu levantei, abri a porta, entrei e vi uma loirona muito bonita sentada atrás de uma mesa cheia de papeis e com um computador de tela plana.
- Fabrício? – ela me olhou.
- Na verdade não, doutora. Boa noite! Eu sou o amigo dele.
- E cadê o paciente?
- Então, ele está com dor de barriga e teve que ir ao banheiro. Foi por este motivo que veio aqui.
- Ah, entendi! Então faz assim: vou chamar o próximo paciente. Quando ele chegar, é só esperar a pessoa sair e entrar direto, tudo bem?
- Sim. Obrigado pela compreensão!
- Imagina!
Voltei ao meu lugar e continuei de olho na telinha. O telejornal acabou, começou “Páginas da Vida” e o meu amigo não apareceu. Já estava ficando até preocupado.
- Por favor, onde fica o banheiro masculino? – perguntei a uma enfermeira.
- Ali, bem na sua frente – respondeu com má-vontade.
Como é que eu ia saber? Não havia nenhuma placa informativa nas paredes. Mulherzinha mal-educada!
- Fabrício? – bati na porta de leve.
- Oi?!
- Tudo bem aí? A médica te chamou já tem um tempo...
- Tudo não. Estou quase desidratando... Já, já eu saio. Espera lá e avisa pra mim, por favor?
- Já avisei. Estou te esperando na frente do consultório.
- Beleza!
Ele só apareceu quando a novela estava na 3ª parte. O coitado estava mais branco do que um papel sulfite e estava até suando frio.


- Caraca, você está mal mesmo!
- Comecei a vomitar também...
- Será virose?
- Faço a mínima ideia! Posso entrar, será?
- Tem que esperar os pacientes saírem primeiro – avisei.
E isso demorou cerca de 5 minutos. Quando o casal de idosos saiu, meu amigo deu um pulo e foi logo entrando na sala da médica.
- É para eu ir junto?
- Não precisa, fica aí. Já volto.
- Como quiser.
Fiquei de olho na novela e me apaixonei pela menina que tinha Síndrome de Down. Tão lindinha! Eu fiquei pasmo com o talento da garota. Ela era mesmo muito lindinha



- Vamos? – ele saiu com dois papeis na mão.
- E aí?
- Vou tomar soro com um remédio esquisito. Ela me deu atestado e preciso comprar esses remédios.
- Quantos dias?
- Só amanhã.  Espero melhorar logo, não aguento mais!
- Complicado. Onde você vai tomar soro?
- Lá na enfermaria. Vem comigo.
Fabrício conhecia aquele lugar como a palma da mão. Me perguntei em pensamento quantas vezes ele já havia ido ali.
- Só aguardar, já iremos te chamar – disse outra enfermeira, essa menos antipática.
- Obrigado.
- Vou assistir a novela, beleza? Qualquer coisa grita aí.
- Desde quando você é noveleiro?
- Desde agora. Gostei de uma menininha que tem lá. Boa sorte.
- Valeu.
A novela terminou, começou “Big Brother Brasil ‘67.489’” e ele não apareceu. Provavelmente o Vini e o Rodrigo estariam preocupados.
- E aí, falta muito? – fui atrás dele.
- Vê aí a quantas anda esse soro?
Eu olhei para cima e vi que o recipiente já estava vazio.




- Já acabou! Vou chamar alguém, espera aí.
- Prometo que não vou sair daqui.
- Engraçadinho...
Chamei a mesma mulher que me indicou onde era o banheiro masculino.
- Espera aí que eu já vou tirar. Tem que aguardar...
- É, mas o soro dele já acabou e a gente precisa ir embora.
- Já falei que tem que aguardar!
Que me perdoem os cariocas, mas ô raça mal-educada! Eu bufei de raiva e fui atrás de uma pessoa competente para tirar a agulha da veia do meu amigo.
- Pode me ajudar? – dei um cutucão nas costas de um homem de branco.
- Que foi?
- Meu amigo está tomando soro e o soro já acabou, a gente precisa ir embora e a enfermeira não quer tirar a agulha do braço dele, você pode me ajudar?
- É que eu sou médico...
- E daí? Isso te impossibilita de tirar uma agulha?
- Não! Calma, eu não disse isso.
- Pode ou não pode me ajudar? O cara precisa descansar!
- Onde ele está?!
- Logo ali...
- Pode me mostrar quem é seu amigo?
Fui até o Fabrício. O rapaz já estava até cochilando.
- Ele!
- Há quanto tempo acabou esse soro?
- Não faço a mínima ideia. Deve ter acabado há muito tempo, porque já faz tempo que ele está aqui.
- Deixa eu tirar isso...
Meu amigo abriu os olhos e piscou as pálpebras algumas vezes. Ele parecia um tanto quanto sonolento.
- Tudo bem aí, rapaz? – perguntou o homem.
- Hum? Ah! Estou com sono só. Tudo bem. Já me sinto um pouco melhor.
- É só isso? Tem que voltar no médico?
- Não! Obrigado...
- Por nada. E desculpem qualquer coisa.
- Imagina – falei. – Consegue ir para casa? Quer que chame um táxi?
- Não, não! Tudo bem. Vamos embora logo.
- Ainda temos que comprar seus remédios, esqueceu?
- Se você achar uma farmácia aberta te dou meu salário inteiro.
- Olha que eu acho, hein?!
- Duvido!




Só foi entrar no ônibus e ele apagou de vez. Como o coletivo estava cheio e nós estávamos de pé, fui obrigado a pedir que um cara levantasse para ele sentar e descansar em paz.
- Moço, por favor, ele pode sentar aí? É que ele estava passando mal, tomou remédio na veia... Acho que apagou de vez.
- Claro! Vão descer aonde?
- Lá no Catete.
- Se precisar de ajuda para levá-lo...
- Nâo, cara. Não precisa não! Muito obrigado.
Ele pegou no sono tão profundamente que peguei o celular no bolso da calça e ele nem percebeu. Quando coloquei a mão dentro do bolso, senti algo mole na palma da minha mão e fiquei louco de tanto tesão. Ele não usava cueca mesmo!
- Oi, Fabrício! Que demora é essa? – perguntou Vinícius quando atendeu o celular.





- É o Caio, Vini!
- Ué, roubou o celular do nosso amigo, fedelho?
- Não! Ele está passando mal, mano.
- Passando mal? – ele ficou preocupado. – O que ele tem? Onde vocês estão?
- Indo para casa. Ele ficou com dor de barriga, vomitou e tudo. Daí a gente foi ao médico, ele tomou um remédio na veia e tipo, apagou! Tá dormindo aqui no ônibus.
- Danou-se! Mas onde vocês estão?
- Ainda estamos na Barra. Você pode nos esperar no ponto de ônibus?
- Claro, mano! Sem problemas. Será que vai demorar muito?
- Acho que uma meia hora porque tá um pouco de trânsito, por incrível que pareça.
- Mas ele melhorou?
- Acho que sim. Não vomitou mais depois que tomou o soro com o tal do remédio.
- Menos mal. Deveriam ter me ligado antes.
- Eu não tenho celular, esqueceu?
- Por que não pegou o dele antes?
- Porque estava com ele!
- Saquei. Vou chamar o Rodrigo também... Vai que precisa, né?
- Sempre bom. Vou desligar senão os créditos dele acabam.
- Firmeza. Já vamos descer pro ponto.
- Falou! Muito obrigado pela ajuda.
- É “nóis”.
Durante todo o percurso eu tentei falar com ele, mas ele não acordou para nada. O coitado jogou o corpo para frente e quando o ônibus freava, automaticamente o tronco ia para trás. Teve uma hora que a cabeça dele bateu com tudo no vidro, mas mesmo assim ele não acordou.
Tive até dificuldade para levantá-lo na hora de descer.
- Acorda, peste! Vamos descer.
- Hã?!
- Acorda, nós já vamos descer...
- Descer para onde?
- Para casa, Fabrício!
- Espera aí, Mané, o moleque tá dormindo aqui... – pediu o cobrador.
- Vou esperar nada não – disse o motorista.
- Não, é sério! – o cobrador se compadeceu. – Ele está passando mal.
- Quer ajuda, moço? – uma mulher se aproximou de mim.
- Por favor?
Foi a maior dificuldade. Eu até suei de tanta força que fiz para descê-lo daquele ônibus.
- Finalmente – Vinícius foi ao nosso encontro. – Como ele está?
- Dormindo – eu dei risada.
- Fabrício? – Vinícius ergueu o rosto do amigo.
Quando ele levantou o rosto até roncou. Era sono mesmo. Ele estava dopado, literalmente dopado.
- Ninguém merece, meu Deus! Como a gente vai levar esse saco de ossos até a república? – Rodrigo perguntou.
- Caio, segura de um lado que eu seguro do outro. Rodrigo você fica atrás porque se ele tombar você segura.
- Onde eu fui amarrar meu jegue? – bufei de raiva.
Mas a culpa não era dele, tadinho! Eu estava com raiva do menino à toa...
- Só mais uma quadra – Vinícius falou.
- Aham.
- Fabrício? – Rodrigo chamou.
Nada dele responder.
- Ele está suando frio – falei.
- Ele precisa de um banho urgente – Vini comentou.
- Isso é responsabilidade sua – Rodrigo tirou o corpo fora.
- Por que minha?!
- Porque vocês são melhores amigos – eu respondi, também tirando o meu da reta.
- Amigos da onça vocês dois! Vou me lembrar disso...



Quando chegamos em casa, o Rodrigo abriu o portão, nós entramos e eles foram direto para o chuveiro.
- Na boa? Não vou conseguir sozinho não. Vou me molhar todo – Vini reclamou.
- Fácil: só você tirar a sua roupa também – Rodrigo brincou.
- Ah, tá! Só porquê você quer! Até parece!
- Brincadeira, Vini. Eu te ajudo, fazer o quê?!
- Muito bem. Assim é que eu gosto.
Enquanto os três estavam no banheiro, eu fiz meu prato de janta, comi e depois aproveitei para colocar minhas roupas em dia.
- Aproveita e coloca essa roupa dele na máquina, Caio, por favor – pediu Vinícius.
- Pode deixar. Ele acordou?
- Acordou e dormiu de novo. Vomitou um pouco...
- Tadinho!
- Pois é. Amanhã ele está de atestado?
- Sim.
- Menos mal.
- Uhum!





Eu acordei, abri os olhos e senti a luz do sol me incomodar.
- Puta que pariu, quem madou deixar a porra dessa janela aberta? – reclamei.
- Quer morrer de calor, infeliz?
- Quer me matar com esse sol, encosto?
- Já está na hora de ir trabalhar, não está não?
- Virou meu pai agora?
- Bem que eu seria um pai legal!
- Você tem idade para ser no máximo meu irmão mais velho e Deus me livre de te ter como meu irmão, você seria muito controlador.
- Seria nada! Eu seria seu irmão preferido.
Eu já o considerava um irmão, será que ele não sabia disso?
- Sei!
- Vai trabalhar logo e me deixa dormir em paz?
- Acho que seria bom você levantar e procurar um emprego. O que acha?
- Acho que você está atrasado! Me deixa dormir, vai?
- É, né? Depois não vou te emprestar dinheiro não...
- Isso é o que nós vamos ver!
Levantei, cocei os olhos, peguei uma roupa limpa e fui direto pro banheiro. Como era de se esperar, dei de cara com alguém no meio do corredor e para a minha surpresa era o Fabrício.
- Como você está se sentindo?
- Melhor. É verdade que eu dormi no ônibus e vocês me carregaram até aqui?
- É sim. Você não lembra de nada?
- Não! Não lembro de nada...
- Foi tenso. Mas depois eu te conto, estou me atrasando já.
- Pode levar meu atestado, por favor?
- Sim, levo sim. Pode deixar.
- Daí você explica ao Ivan o que aconteceu?
- Claro, mano!
- Valeu, Caio! Te devo uma.
- Deve mesmo, mas é só me dar uma bebida e estamos quites.
- Depois dessa eu te dou até duas!
Não houve tempo para café da manhã. Eu tive que me arrumar muito rapidamente, passei perfume e nem consegui pentear os cabelos.
- Pelo menos para alguma coisa você serviu, Bruno Silva!
- O que é que você está falando aí, Caio?
- Não dormiu não, neném?
- É impressão minha ou eu ouvi o nome do Bruno?
- Estava pensando alto. Pelo menos para alguma coisa ele me serviu: me deu um perfume muito bom!
- Esse perfume foi ele que te deu?
- Aham!
- Quando você sair eu vou jogar isso no vaso sanitário!
- Você não é louco! Te mato, simples assim. Deixa meu perfume em paz...
O vidro estava mais que meio e eu estava economizando ao máximo.
- Se soubesse que ele tinha te dado isso já teria jogado fora.
- Não se atreva, Rodrigo! Esse perfume é muito bom para ser jogado fora. Não faça isso, por favor.
- Isso te faz lembrar dele...
- Não importa. É meu e eu não vou jogar fora.
- Mas eu vou!
Respirei fundo, abri a mochila e coloquei o vidro no meio das minhas coisas. Não podia me dar ao luxo de perder aquela relíquia por um simples capricho do meu melhor amigo.
- Bom dia! Até mais ver.
- Bom dia, espertinho. Mas não pense que vou esquecer de jogar essa bosta fora.
- E não pense que eu vou esquecer de partir a sua cara se você fizer isso!
O dia estava mais que lindo. Um sol muito quente já estava no céu e a claridade era tanta que até estava me incomodando.
Eu desci até a rua, atravessei pelo asfalto quente e quando ia chegando no outro lado ouvi alguém gritar pelo meu nome.
Quando me virei, meu coração disparou. Um garoto mais ou menos da minha altura estava correndo com a língua de fora. Eu não acreditei no que estava vendo! O que será que ele queria comigo?
- Caio? – Vítor chegou até onde eu estava, respirou fundo e olhou dentro dos meus olhos, ainda sem ar. – Nós podemos conversar?

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