terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Capítulo 82

É
 claro que eu não perderia aquela oportunidade!
Sem pestanejar, peguei o potinho de creme, que provavelmente ele tinha roubado das meninas, e passei uma quantidade generosa por toda a extensão das costas daquele cara delicioso.
- Sua pele está quente demais, acho que você pegou ensolação – brinquei.
- Tá me tirando? Sou carioca, “mermão”! Estou acostumado a pegar sol.
- Não é o que parece – dei uma risadinha abafada.
Ele estava mesmo bem quente. Eu seria burro se não aproveitasse aquela oportunidade; portanto, fiz questão de sentir a textura da pele do Gabriel, de sentir os músculos torneados dele, de sentir a força que ele tinha no corpo... Fiquei completamente excitado naquela situação.
- Não tá bom não? – ele perguntou.
- Não. Tem que deixar o creme penetrar bastante – falei. – Nunca passou creme antes?
- Eu não! Isso é coisa de mulher...
- De quem você roubou esse creme?
- Da Alexia – pelo espelho do armário, percebi que ele abriu um sorriso.
- Safado! Você vai acabar ficando com ela.
- É isso mesmo que eu quero!
- E eu não sei? Não nasci ontem.
- Espertinho.
- Vou passar mais um pouco, espera aí...




Não havia necessidade de repetir a dose, mas eu queria que aquele momento se prolongasse o máximo possível. Dessa vez, passei o creme perto da cueca dele e é claro que eu fiquei olhando pra bunda do gostoso, né?
- Epa, cuidado onde você vai passar a mão, rapaz!
- Relaxa, não vou te assediar sexualmente.
- Estranharia muito se você fizesse isso. Coisa de viado!
Engoli em seco. Como seria a reação do gato quando ele soubesse a minha orientação sexual?
- Acho que já está bom, Caio. Muito obrigado, viu?
- Dez reais.
- Se eu soubesse que você ia cobrar, teria pedido pra Alexia passar. Mercenário.
- Acha que é fácil assim? Tenho que cobrar pelos meus serviços, meu querido!
- Sei. Será que vai demorar muito pra essa chuva passar? Queria jantar fora... Estou com fome!
- Não vai pra academia hoje? – perguntei.
- Hoje é sábado e ela não abre, infelizmente. Por isso fiquei na piscina o dia todo.
- E se lascou, porque você está todo vermelho.
- Tá me tirando? Eu não sou branquelo que nem você pra ficar vermelho.
- É, mas você está vermelho.
- Impressão sua!
- Nossa, gato! Você e a Alexia estão dois pimentões, hein? – Janaína deu risada.
- Não disse que você está vermelho?
- Caralho, eu não estou vermelho! – ele exclamou.
- Está sim – Janaína e eu falamos ao mesmo tempo.
- Vermelha está a Alexia!
- Eu estou toda ardida – ela fez bico. – Queria morar dentro de uma geladeira hoje.
- Por isso que esse quarto está frio assim? – perguntei.
- Nem me fala, estou até com dor nos ossos! – Jana estava de blusa de frio.
- Nossa, que exagero!
- Não gosto do frio, colega. É horrível.
- Quero só ver se esfriar o tempo aqui em São Paulo. Aí você vai ver o que é frio!
- Está amarrado no sangue de Jesus que tem poder – ela bateu na madeira do criado mudo. – Nâo quero saber de frio!
- Essa chuva não vai passar não? Não vou ficar nesse hotel hoje à noite nem fodendo! – Gabriel foi até a varanda.
- Pelo jeito não vai parar tão cedo – comentei.
- Diabos, duvido que lá no Rio esteja chovendo.
- Não está – falou Janaína. – Acabei de falar com a minha mãe.
- Viu só? Só chove nesse fim de mundo!
- Não fala assim da minha cidade, hein?
- Mas é, Caio! Nunca vi chover tanto como chove aqui. Deve ser a falta de natureza, só pode.
Na verdade, a falta de áreas verdes não causa chuva e sim a falta dela. Gabriel se expressou errado nessa colocação.
- É mesmo, Caio! Como você conseguiu morar numa cidade tão cinza como essa aqui? Dá para contar as árvores nos dedos de uma mão só – Alexia exagerou.
- Não exagera?! O Rio também não é lá muito arborizado!
- Imagina que não é! Claro que é! Tem o Jardim Botânico, tem as montanhas, tem a floresta... Tem verde pra tudo que é lado, aqui em São Paulo só tem concreto!
- Eles têm razão – Janaína concordou.
- O que eu posso fazer? Não sou o prefeito da cidade para mandar plantar árvores. Mesmo assim eu amo a minha cidade.
- Cada louco com a sua loucura, né? – Alexia suspirou.
- Vocês trouxeram guarda-chuva? – questionei.
- Sim – falou Janaína. – Minha mãe me alertou que provavelmente iria chover aqui nessa cidade linda.
- E vocês?
- Eu trouxe – falou Alexia.
- Eu devo ter um na minha mochila – comentou Gabriel. – Por quê?
- Porque nós podemos sair, ué. Essa chuva não é motivo para ficarmos presos nesse hotel.
- E eu vou molhar a minha escova novinha em folha? – Janaína me fuzilou com aquele olhar mortal. – Nem a pau!
- Se eu estragar a minha escova, eu mato vocês três – ela estava com a sombrinha; que era rosa choque; uma blusa de capuz e para finalizar, as madeixas estavam envoltas em uma touca de banho.
- Relaxa – falou Gabriel. – Com essa proteção toda aí você não vai molhar nenhum fio dos seus cabelinhos.
- Assim espero, porque não quero perder meu trabalho, seus filhos da mãe!
A chuva já não era tão forte como no começo, mas também não podia ser considerada fraca.
- Ainda bem que o metrô não é longe do hotel – disse Alexia.
- Verdade – concordei.
- Onde vai nos levar hoje? – perguntou Gabriel.
- Não sei, onde vocês querem ir?
- Na Paulista, na Paulista!!! – Alexia exclamou.
- Por mim, em qualquer lugar que não seja ao ar livre – falou Janaína.
- Eu vou em qualquer lugar. Só quero beber um pouco – disse Gabriel.
- Então vamos pra um barzinho na Paulista – finalizei o assunto. – Vamos matar a lombriga da Alexia.


- Isso aí, isso aí – ela me apoiou.
Como nós estávamos no Centro da cidade, estávamos perto de várias estações de trem e metrô; então para facilitar a nossa vida, optei em ir direto pra estação da Luz, porque assim não teríamos que fazer tantas baldeações e eles também aproveitariam pra conhecer a cidade.
- Caio, a estação não é por aqui – falou Janaína. – Eu me lembro bem do caminho.
- Nós estamos indo pra outra estação, Jana. Vai ser melhor pra gente.
- Por que? – quis saber Gabriel.
- Porque se a gente for pra outra, teremos que fazer duas baldeações. Se formos para onde eu estou levando vocês, faremos apenas uma.
- Ah, saquei. É longe?
- Mais uns 15 minutinhos – falei.
- QUINZE MINUTOS? – Janaína esbravejou. – Quer acabar comigo?
- Cala a boca, meu. Nem está chovendo mais!
- Imagina se estivesse!
Naquela altura do campeonato, a chuva já tinha sido rebaixada para uma forte garoa.
- Está passando rápido – comentou Gabriel. – Relaxa, Jana!
- Odeio molhar os meus pés e já estou quase ensopada – ela reclamou.
- Relaxa? – eu pedi.
- Inferno!
Nós descemos na Trianon – Mas. Eu decidi fazer um passeio com eles por boa parte da Avenida Paulista e nada melhor que começar pelo Masp.
- A Paulista fica longe daqui? – perguntou Alexia.
- Não, nós vamos sair literalmente nela.
- E ela é muito grande, não é?
- Ela é imensa. É aqui que acontece o Reveillón de Sáo Paulo e onde acontece uma parte da São Silvestre também.
- Adoro a São Silvestre – Janaína riu. – Me divirto vendo aquele povo feio correndo feito uns loucos.
- Que maldade, Jana – eu ri.
- Mas é, são todos feios. Não tem um que valha a pena.
- Você é ruim demais. Chegamos, Alexia. Essa é a Paulista.
- Ah, é essa? Pensei que era diferente.
- O que imaginou? – perguntou Gabriel. – Que fosse iguais as avenidas dos EUA?
- Não, é claro que não. Pensei que fosse feia, mas é bonita!
- Claro que é bonita, você está em um dos cartões postais de São Paulo. Queria que fosse feio?
- São Paulo é feia, Caio. Imaginei que aqui também fosse.
Eu já estava ficando seriamente irritado com tantos comentários desnecessários por parte deles.
- Prefiro nem comentar. Vamos dar uma volta para vocês conhecerem o local.
- Com essa chuva? Não, obrigada! Prefiro ficar sentada aqui na escada vendo o povo passar – brincou Janaína.
- Então tá! Você é que sabe – eu saí andando e os deixei para trás.
- Me espera, Caio – ela saiu correndo quando eu e os meninos nos alonjamos um pouco.
- Ah, mudou de ideia? – perguntei.
- Melhor eu vir com vocês, senão o povo vai pensar que eu sou uma mendiga e vão querer me dar esmolas.
- Com essa sombrinha horrorosa é bem capaz mesmo – falou Gabriel.
- O que tem minha sombrinha? Ela é linda!
- Uh... Muito linda!
- É sim, não é, Alexia?
- A cor é linda, mas se você chegar lá no horizonte a gente ainda vai conseguir te enxergar.
- Essa é a intenção, odeio passar despercebida nos lugares.
- A gente percebeu!




Como a chuva estava fina naquele momento, conseguimos passear bastante e optamos por ficar em um barzinho aparentemente agradável. Ele não estava muito movimentado.
- Vão querer o quê? – perguntou a garçonete.
- Me vê uma vodca – falou Gabriel.
- Duas – eu o corrigi.
- Eu quero um suco de maracujá com leite – disse Alexia.
- E eu quero uma Coca-Cola bem gelada – a Jana era viciada em Coca.
- Já volto! – falou a funcionária.
- Aqui parece ser bem agradável – comentou Gabriel.
- Nunca estive aqui antes – falei a verdade.
- Não corre o risco da gente encontrar os amigos do seu irmão de novo não, né? – Alexia sondou.
- Espero que não! – fui sincero. – Seria coincidência demais.
- A cidade é imensa, encontrar o Caio aqui é o mesmo que procurar uma agulha em um palheiro –falou Janaína.
E ela tinha mesmo razão. Era praticamente impossível me encontrar naquela cidade. Se isso acontecesse, seria uma bela pegadinha do destino!
- Aqui estão as bebidas – a moça voltou com uma bandeja e quatro copos enormes.
- Obrigado – nós agradecemos e cada um se serviu com o seu copo.
- Um brinde – propôs Gabriel.
- A quê? – Alexia perguntou.
- Ao cabelo da Janaína que não molhou.
- Ai que tudo – ela riu. – Adorei!
Batemos os copos e cada um deu um gole em sua bebida. Eu senti minha garganta arder quando a vodca desceu para o meu estômago.
- Não sabia que você bebia tanto, Caio – disse Alexia.
Pelo visto, ela já estava mais calma comigo. Menos mal...
- Bebo socialmente, Alexia.
- Já ficou bêbado?
- Já sim, mas não sou de dar vexame não.
- Essa eu queria ver.
- Posso experimentar seu suco? Nunca tomei maracujá com leite.
- Pode.
Parecis mousse. Fiquei apaixonado pela bebida. Uma delícia!
- Nossa, que delícia! Vou querer um também.
- Bom né? É bom para acalmar os nervos.
- É minha filha, com a TPM que você está só um barril pra te acalmar – falou Janaína.
- Acho que nem isso – a própria Alexia deu risada. – Quando eu fico de TPM, fico bipolar. Não estranhem se daqui a pouco eu gritar de estresse aqui.
- Graças a Deus eu sou homem – falei.
- Um brinde a nós, Caio – Gabriel ergueu o copo. – Que não passamos por isso todo mês.
- Um brinde!
- Dois ridículos – falou Janaína.
- Cala a boca – eu falei. – Pelo menos eu não trouxe uma sombrinha rosa berrante e uma touca de banho comigo!
- Minha sombrinha é linda!
- Lindamente horrorosa! – exclamei.
- Estou sentindo que alguém vai levar uma “sombrinhada” na rua mais tarde – ela suspirou.
Meus amigos e eu ficamos jogando conversa fora durante a madrugada toda. O barzinho era mesmo agradabilíssimo. Era calmo, pacato, com uma música gostosa e não era muito cheio. Perfeito para quem queria paz e tranquilidade como eu.
- Será que o metrô já voltou a funcionar? – Gabriel perguntou por volta das 5 da manhã.
- Já voltou sim – deduzi. – Pelo meno na época que eu morava aqui, ele voltava por volta desse horário. Já querem ir?
- Óbvio, Caio – disse Alexia. – Já estou morta de sono.
- E o Gabriel já está ficando bêbado – brincou Janaína.
- Eu? Imagina! Tô longe de ficar bêbado, hein?
Mas ele já estava com hálito de cachaça. Será que eu também estava?
- Então vamos, ué. Quem paga a conta hoje?
- Você!!! – eles exclamaram em uníssono.
Por que eu fui abrir a boca? Ainda bem que não ficou tão caro. Meus amigos e eu acordamos que todas as vezes que nós saíssemos, alguém ficaria responsável pela conta. As próximas seriam das meninas.
- Vamos? – perguntei.
- Sim. Ficou caro? – sondou Alexia.
- Nada! Ficou a mesma coisa de ontem praticamente. Tranquilo!
- O Caio é cheio da grana, Alexia – falou Janaina.
- Ah, sou sim. Estou morando em uma cobertura de frente à Praia de Copacabana. Não estão sabendo?
- Sonha, Caio! Um dia você chega lá, parceiro – Gabriel bateu no meu ombro.
- Com certeza. Ih, Jana! A chuva aumentou...
- Eu mato vocês! Quem inventou de vir até esse fim de mundo mesmo?
- A Alexia – respondemos eu e o Gabriel.
- Prepare-se para ser jogada do 8º andar, queridinha. Colocarei seu nome em minha orações.
- Muito engraçado! – a branquela fechou a cara.
- Melhor não brincar com ela hoje, não esqueça que ela está virada no setenta – falou Gabriel.
- Ih, é mesmo. Melhor eu parar senão eu vou voar do 8º andar!
- Ainda bem que você entendeu – Alexia brincou. – Onde é a estação mesmo?
- Lá pra cima.
- Não passa ônibus aqui não? – perguntou Gabriel.
- Passa sim!
- E ele já está vindo aí... – Janaína estava olhando para o outro lado. Quase no horizonte havia um ônibus parado.
- Tem algum busão que passe perto do nosso hotel? – perguntou Gabriel.
- Vários. Querem ir de ônibus?
- Sim – disse ele. – Se a gente continuar andando de metrô, nunca vamos conhecer São Paulo.
- Ele tem razão – disse Janaína.
- Então vamos de ônibus, ué!
Nós paramos embaixo de um ponto com cobertura, senão a Janaína teria um troço. Ficamos mais de meia hora esperando o coletivo e quando este finalmente apareceu, a morena foi a primeira a entrar.
- Se demorasse mais 5 minutos, eu teria desistido – ela informou. – Quanto é a passagem, moço?
O cobrador bateu duas vezes em cima do panfleto que informava o valor da passagem e minha amiga bufou de raiva. Senti vontade de dar risada, mas só o fiz quando nós sentamos na última fileira, perto da porta de saída do veículo.
- Podia ter dormido sem essa, hein? – falei.
- Grosso do inferno! Vou fazer um vodu pra ele.
- Você nem sabe o nome dele – Alexia riu.
- É a sorte dele. Gordo desgraçado!
- Janaína, você é hilária – eu falei.
- Qual é, Caio? Está me chamando de palhaça por acaso?
- Só falta o nariz vermelho – sorri.
- Idiota! Vou fazer um vodu pra você também.
- Não tenho medo de macumba.
- Caio, que lugar é esse? – Gabriel tirou nosso foco.
- Ainda estamos na Paulista.
Fui quase um guia turístico para os três. Eles só pararam de me questionar onde nós estávamos quando a gente desceu do ônibus, quase que em frente ao hotel.
- Olha a poça de água – alertei.
- Bem que dizem que se cair uma garoa essa cidade inunda – reclamou Janaína.
- Você nem viu enchente ainda, garota. Queria ver se fosse em janeiro, fevereiro ou março. Aí sim você ia ver o que é chuva e o que é enchente.
- Deus me livre, não quero morrer afogada.
- Não exagera?




Sequei bem meus pés antes de entrar no hotel. Não queria parecer um desleixado, mas mesmo passando a sola dos tênis no tapeta várias vezes, foi impossível não deixar algumas gotas d’água pelo hall de entrada.
- Nunca mais sairemos com chuva, combinado? – perguntou Janaína.
- Sem problemas, da próxima vez nós deixamos você aqui no hotel – falou Gabriel.
- É assim, Gabo? Sou tão facilmente descartada desse jeito?
- É você que está fazendo por onde ser descartada.
- Bom dia, suas lindas – eu me despedi quando o elevador abriu a porta no andar delas. – Até mais tarde.
- Dorme bem, Caio – Janaína beijou o meu rosto.
- Adeus, Caio.
- Adeus, Alexia!
- Essa Alexia é doida. Adeus? Quem vê pensa que um de vocês dois vai morrer.
- Deus me livre, estou novo demais para morrer. Nem cheguei na casa dos 20 ainda!
- Desnecessário esse seu comentário, Caio. Desnecessário!



Eu só me levantei às 14 horas porque não estava mais aguentando a fome. Parecia que a minha barriga estava grudada nas costas, de tão faminto que eu estava.
- Boa tarde – a voz dele estava mais grave que o normal.
- Boa tarde. Dormiu bem?
- Sim e você? – Gabriel quis saber.
- Bem também – bocejei vagarosamente e esfreguei meus olhos em seguida. – Estou morrendo de fome!
- Eu também. Vamos comprar comida?
- Certeza. Já volto.
Fiquei cerca de 10 minutos no banheiro. A água do chuveiro estava tão aquecida que fiquei com mais sono ainda e até cochilei, mesmo estando em pé e completamente desconfortável.
- Anda logo, eu quero mijar – ele bateu na porta e como sempre, tentou abrí-la.
- Já estou indo. Só um momento.
- Abre aí, deixa eu entrar!
Ele só podia estar brincando, né?
- Não mesmo. Já estou saindo – desliguei o chuveiro.
- Qual o problema? Tem vergonha?
- Não – falei com sinceridade. – Só não quero abrir.
- Aham, sei! Se você fosse sem vergonha, abriria essa porta e me deixaria entrar.
E eu abri mesmo, mas abri porque já tinha terminado meu banho  e já estava de cueca e enrolado na minha toalha.
- Pronto, pode usar.
- Obrigado. Você é muito gentil!
- Muito agradecido.
Enquanto ele ficou no banheiro, eu me arrumei e preparei as minhas coisas pra sair. Por sorte, não estava chovendo, mas o dia estava nublado e sem graça.
- Já está pronto? Que rápido.
- Sou a eficiência em pessoa – abri um sorriso.
- Você é a modéstia em pessoa, isso sim.
O cara tirou a velho shorts de jogador de futebol, jogou no meio do quarto e abriu a porta para procurar algo que vestir. A pele das costas do meu amigo estava extremamente vermelha. Vermelha até demais.
- Quanto tempo você ficou sem pegar sol, Gabo?
- Faz um tempinho que não vou à praia, por quê?
- Porque você está muito vermelho. Não está ardendo não?
- Não! Sou acostumado com o sol, Caio.
- Não é questão de ser acostumado, Gabriel. É questão de ensolação. Isso é perigoso.
- Perigoso nada, nasci e cresci no Rio. Vou, ou pelo menos ia, todos os finais de semana à praia. Isso é normal, logo eu descasco e fico bronzeado. Antes de voltar pra minha cidade esse vermelhão já vai ter ido embora.
- Se você está dizendo...
- Bora? Com a fome que eu estou, comeria até um javali.
- Cavalo do jeito que você é, eu não duvido nada.
- Cavalo em qual sentido?
- Músculos.
- Ah – ele sorriu.
Percebi que ele se sentia muito bem sempre que alguém elogiava seus músculos avantajados. Deveria fazer bem pro ego dele.
Não sei se foi coincidência demais ou se foi obra do acaso, mas o fato é que o elevador parou no 8º andar e quem acabou entrando foram as nossas amigas.
- Se tivéssemos combinado, não teria dado certo – eu falei.
- Estão indo comer?
- Uhum.
- Está tudo bem, Alexia? – perguntou Gabriel.
- Não. Estou ardida, estou com cólica, estou com dor de cabeça, com fome e estou querendo matar um.
- Creio em Deus Pai! – até me afastei dela. – Por isso que eu agradeço a Deus por ter nascido homem.
- Mulher é um bicho tão estranho, que sangra todo mês e não morre. Raça esquisita, viu? – Gabriel brincou e sorriu.
- Estranho vai ser o tapa que eu vou dar na sua cara, já, já – Aleixa bufou.
- Sem brigas, sem brigas – ele também se afastou. – É brincadeira!
- Nunca brinque com uma mulher de TPM, Gabriel – aconselhou Janaína.
Escolhi o mesmo prato de sempre: bife com batatas fritas. O filé de frango parecia sem graça e eu odiava peixe com todas as forças da minha alma.

- Não gosta mesmo de peixe? – indagou Gabriel.
- Odeio. Não posso nem sentir o cheiro.
- Então um de nós dois vai ter que comer na varanda.
- Que seja você, porque ninguém merece o cheiro desse negócio aí.
Gabriel se aproximou, tocou no meu ombro e falou no meu ouvido:
- Se você não gosta de peixe, você não gosta de mulher!
- Hein? – não entendi nada do que ele falou.
- Se você não gosta de peixe, você não gosta de mulher! – ele repetiu.
- O que tem uma coisa a ver com a outra?
Ele revirou os olhos e suspirou.
- Deixa pra lá, você é muito lesado!
Fiquei pensando no que ele falou e só quando a gente chegou no hotel eu entendi a frase de duplo sentindo.
- Como você é idiota, Gabriel! – eu ri.
- Entendeu agora?
- Uhum.
- E qual a sua resposta?
- Que não tem nada a ver uma coisa com a outra.
- Bobão! – ele deu um soco forte no meu tórax.
- Coitado do Caio, com outro desse ele vai parar lá na Avenida Paulista – brincou Janaína.
- Na Paulista? Com outro desses eu paro lá na minha casa no Rio.
Janaína caiu na risada. Ela era uma louca, louca mesmo. Eu amava a minha amiga...
- Já disse que eu te amo hoje? – perguntei.
- Não!
- Te amo, sua negra azeda – a abracei.
- Também te amo, seu moleque branquelo.
- Já disse que sou negão, meu. Sou quase um Pelé da vida.
- Está longe, hein amigo? Nem se você ficar 3 dias e 3 noites debaixo do sol.
- Como é, Janaína? – Gabriel deu risada. – Nem se o quê?!
- Nem se ele ficar 3 dias e 3... Opa, falei merda...
Foi o assunto do dia. Ela nem reclamou da gente ficar tirando sarro da cara dela, porque ela sempre fazia isso com a gente.
- Caio, posso usar a internet? – perguntou Alexia.
- Pode sim.
- Bem que está mesmo um cheirinho de peixe aqui – comentou Janaína.
- Nem me fala, vou ser obrigado a ficar sentindo esse cheiro até virem limpar meu quarto – reclamei.
- Não reclama, Caio – Gabriel estava deitado e assistindo televisão.
- Reclamo sim, não gosto desse cheiro horrível.
- Vou dar uma olhada no visual daqui de cima – Jana abriu a porta da varanda e saiu do quarto. – Quase no colo de Jesus mesmo, hein?
- Idiota – eu ri.
- Misericórdia, que frio danado. Tô fora!!!
Ela entrou rapidinho.
- Nunca vi alguém tão avessa ao frio como você.
- Não gosto. Qual a parte você não entendeu?
- Já entendi. Não precisa me bater.
- Quero ir em uma balada esse final de semana. Já sabe onde vai nos levar?
- É? Já sabe? – reforçou Gabriel.
- Olhem na internet onde vocês querem ir. Nunca fui em balada aqui.
- Como não? – eles estranharam.
- Esqueceram que quando eu saí de Sampa eu ainda era menor? Não cheguei a ir em nenhuma boate não.
- Não acredito! – exclamou Janaína. – Que dó!
- Não ligo, já fui em várias no Rio...
Na verdade não havia ido em várias, mas já havia ido várias vezes.
- Vê aí, Alexia. Vê um lugar bacana pra gente ir – pediu Janaína.
- Já estou vendo. Tem uns lugares legais no Morumbi, na Lapa, no Tucuruvi, em Itaquera...
- E aí, Caio? Qual escolhe?
- Aí você quebra as pernas, Alexia. Tudo lugar longe um do outro. Morumbi na Zona Sul, Lapa lá onde Judas perdeu a dignidade, Tucuruvi é quase na divisa com o Egito e Itaquera fica quase na China...
- Depois eu que sou exagerada – disse Janaína.
- Vocês verão que não é exagero.







NA SEGUNDA-FEIRA...
- Bom dia? – disse Nilva.
- Bom dia! – respondemos.
- BOM DIA?
- BOM DIA! – nós gritamos.
- Ah, agora sim!!! Assim que eu gosto, todos acordados.
Mas não foi bem isso que aconteceu, depois que nossa turma voltou do almoço, um dos funcionários acabou cochilando e a Nilva deu um grito tão forte que até ecoou dentro dos meus ouvidos:
- ACORDA, THIAGO!
- Hã? Hã? – o cara deu um pulo da cadeira e ficou assustado.
- Tudo bem, querido? Vai lá fora lavar o rostinho, vai? – até a Nilva deu risada.
- Desculpa, Nilva.
- Não tem problema! Vai lavar o rosto.
- Já volto!
- Estão entendendo, pessoal? Estou indo muito rápido?
Só sentei ao lado do Carlos no primeiro dia de treinamento. Desde então, ele só ficou com o tal do Renato e eu sempre revesei com um dos meus amigos, mas nem por isso nós deixamos de nos falar.
Ele sempre me cumprimentava, sempre puxava algum assunto e eu também tentava fazer o mesmo.
A única coisa que estava sendo diferente na tarde daquela segunda-feira, é que eu percebi que ele estava me olhando demais. Em um determinado momento até me senti incomodado.
- O que será que ele quer comigo? – falei comigo mesmo.
- O que foi, Caio? – perguntou Janaína.
- Nada, Jana! Estou pensando alto.
- Bom pessoal, com isso nós terminamos a parte de venda. Agora vamos entrar em montagem.
- Já?! – algumas pessoas se espantaram.
- Sim! Essa turma está bem adiantada!!!
- Que bom que estamos adiantados – falou Gabriel. – Isso significa que a gente vai poder voltar antes pro Rio!
- Será? – Jana se virou para fitá-lo.
- Vamos aguardar e ver no que dá.
Durante o resto do treinamento, Carlos não parou de me olhar e eu sempre pegava ele no pulo. Quando eu retribuía as olhadas, ele desviava os olhos muito rapidamente e às vezes ficava com as bochechas vermelhas.
- Por hoje é só! Vou liberá-los meia hora antes do horário. Olha como eu sou boazinha! – disse Nilva.
- Podemos ir embora então?
- Não, só vão embora aqui da sala, mas terão que esperar para bater o crachá na hora certa. Ou querem desconto na folha de pagamento?
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH – a gente lamentou.
- Vocês são muito cara de pau, isso sim! – a baixinha gargalhou e abriu a porta. – Bom descanso, meninos. Até amanhã!
- Nilva, a gente pode descer na loja e ver os produtos? – perguntou uma funcionária. – Eu preciso comprar uma chapinha!
- Só não podem como devem! Só não esqueçam de bater o crachá na hora certa.
- Nosso desconto de 5% já está valendo? – perguntou outra moça.
- Sim! À partir do momento que vocês têm crachá, o desconto já é válido.
- É hoje que eu compro minha chapinha! Até amanhã, Nilva!
- Até amanhã, Dinorá. Bom descanso à todos!
- Vamos descer também? – propôs Janaína. – Quero comprar um ferro de passar porque o meu está uma negação.
- Ah, está mesmo – concordou Alexia. – Não esquenta nem com reza brava.
Como era de se imaginar, o movimento estava muito grande. Meus amigos e eu passeamos pelo interior da filial e as meninas ficaram tentadas em comprar um monte de coisa. Só não o fizeram por causa da pouca verba que tinham.
- Espero que no Rio haja promoções como essas – falou Alexia.
- Provável que sim – disse Gabriel.. – Loja nova, tem que ter promoções.
- Verdade.
- AI QUE LINDO! – Janaína soltou um gritinho de excitação.
- O que foi, Jana? – perguntamos.
- Um ferro cor-de-rosa! É meu!
- Não acredito? – me revoltei. – Que coisa mais chata!
- Chato é você, garoto! Não é lindo, amiga?
- Só não compro um porque não tenho grana. Me espere no mês que vem! Lindo mesmo.
- Vamos, Caio – Gabriel me puxou pelo pulso direito. – Vamos ver as televisões de LCD.
Naquela época, não era qualquer um que podia comprar uma tevê de LCD e nem existia LED ainda. Tudo estava bem no comecinho e era a maior febre nacional.
- Em pensar que a minha televisão é daquelas de madeira, sabe? – ele comentou.
- Minha nossa, Gabo! Essa é velha, hein?
- Ela era do meu avô. Eu sempre gostei muito dessa televisão e ele me deu de presente.
- Não tem nem controle remoto, né?
- Não, não tem. Mas pega melhor que essas LCD aí, viu?
- Pior que pega mesmo.
- Nós vamos para o caixa – disse Janaína. – Fiquem espertos, falta 5 minutos para bater o ponto.
- OK – meu amigo e eu dissemos em uníssono.
- Vou ficar aqui com vocês, namorando essas belezuras. Lindas, não? – disse Alexia.
- É perfeito! Vou comprar uma qualquer dia desses – falou Gabriel.
- Ué? Mas você não disse que tem a sua?
- Sim, mas uma dessas é para colocar na sala, Caio.
- Ah, entendi!
- Carinho, né?
- Muito – concordei. – Ninguém merece.
- Se a comissão daqui for boa mesmo, dá pra comprar até à vista – falou o bombadão.
- Isso é o que dizem – Alexia opinou. – Vamos ver se na prática acontece isso mesmo.
- É, vamos ver...
- Pronto, já paguei o meu presente. Vamos bater o crachá! – mandou Janaína.
Não subimos pro andar do treinamento, batemos o ponto no térreo mesmo e de lá nos dirigimos direto para a van. O Ricardo já estava nos esperando.




- Frio da porra – reclamou Janaína.
- Nem está frio – eu estava acostumado e não senti frio.
- Claro que está!
Estando ou não estando frio, eu não queria ficar no hotel naquela segunda-feira à noite. Eu queria andar, passear pelas ruas de São Paulo e curtir um pouco da minha cidade. E queria fazer isso sozinho.
Fazia uma noite agradável. A lua estava lindamente cheia e impecável no centro do céu que ainda estava escurecendo. Eu precisava ficar um pouco sozinho, precisava curtir e relembrar os velhos tempos. Meu corpo e minha mente necessitavam disso.
- Ai que cólica – reclamou Alexia. – Quando chegar no hotel eu vou ficar deitada o resto da noite. Não vou nem jantar.
- Quer um remédio? – ofereceu Janaína.
- Acabei de tomar, não adianta. Eu preciso de uma compressa quente urgentemente.
- Lá a gente dá um jeito, amiga. Fica tranquila!
- Odeio essa dor insuportável – a coitada suspirou.
Imaginei o quão difícil deveria ser suportar isso mensalmente. Mulher é um ser que realmente sofre!
- Caio? Está no mundo da lua? – Henrique tocou no meu ombro.
- Hum? Desculpa, Carlos.
- Posso usar seu notebook hoje? – ele sorriu como sempre fazia.
- Claro, pode sim!
- Obrigado!
- Disponha.

Como estávamos em uma segunda, o trânsito naquele horário estava literalmente infernal. As buzinas, a falta de espaço para se movimentar e a lentidão com a qual o veículo estava se movimentando me deixou extremamente irritado, a ponto de querer descer e ir a pé para o hotel.
- Estamos longe do hotel? – perguntou uma das vendedoras.
- Não – eu respondi.
- Dá pra ir a pé? – ela perguntou de novo.
- Dá sim, vai gastar uns 15 minutos.
- Então eu vou a pé! Não aguento mais ficar nessa van.
- Tem certeza? – perguntei.
- Absoluta.
Pronto! Bastou essa iniciativa e todos quisemos descer, todos menos a Alexia.
- É perigoso – Ricardo não estava de acordo.
- Eu conheço bem o caminho, Ricardo. Sou daqui, esqueceu? – falei.
- Não, não esqueci! Eu sou responsável por vocês, não quero que nada de ruim aconteça com ninguém.
- Não vai acontecer nada, nós estamos praticamente no hotel, mais uns 15 minutos estaremos lá. Eu me responsabilizo – fui meio louco, mas o estresse falou mais alto.
- Então é por sua conta e risco!
- Por minha conta e risco – concordei.
Ele foi vencido pela maioria e nós seguimos mesmo a pé. Não era um percurso muito longo e o trajeto seria tranquilo pois as ruas estavam bem movimentadas.
Eu fui na frente de todos e eles foram me seguindo. Fiquei me sentindo tão responsável nesse momento!
- Como é bom ter alguém que conhece a região – ouvi alguém falando lá no fundo.
- E aí? – Carlos foi para o meu lado. – O que está achando do treinamento?
- Bom. Bem completo. Adorei as táticas que ela nos passou hoje.
- Verdade. Não vai usar mesmo o note hoje?
- Não, não. Pode mexer sem problemas.
- Fico muito grato. Essa abstinência de internet está me matando.
- Faço ideia. Eu era assim há uns 3 anos atrás.
- Verdade?
- Sim, mas depois que me mudei pro Rio, meu vício se perdeu. Quase nem uso a internet.
- Queria ser assim como você.
- Oi? – senti que alguém tocou nas minhas costas. – Seu nome é Caio?
- Isso!
- Caio, posso te pedir um favor? – era uma das vendedoras.
- Claro! Se estiver ao meu alcance...
- Você pode explicar como eu faço para chegar na 25 de Março?
- Ah, sim! É só você ir de metrô e descer na São Bento.
- São Bento? Mas como eu chego nessa estação?
- Aí vai depender, como você se chama mesmo?
- Ingrid.
- É fácil, Ingrid. O melhor que você tem a fazer, é ir até a Luz e lá você pega o metrô direto pra 25 de Março. Como nós estamos no Centro da cidade, também dá pra ir a pé.
- E quanto tempo leva a pé?
- Uma hora em média
- Mas acho que a pé nós vamos nos perder. Melhor ir de metrô mesmo.
- É bem pertinho. Não tem erro.
- Entendi! Obrigada, Caio!
- Por nada.
- Você é tão inteligente, Caio – Carlos me parabenizou.
- Por que diz isso?
- Ah, sei lá! É essa a impressão que eu tenho.
- Obrigado pelo elogio. Nós chegamos.
- Já? Que pertinho!
- Já! Não é longe não. Se torna longe por causa do trânsito.
- Verdade.


Todos me agradeceram por eu tê-los conduzido até o hotel. Respirei aliviado por nada de errado ter nos acontecido.
- Ouvi você falando com a Ingrid que nós estamos perto da 25? – perguntou Janaína.
- Mais ou menos!
- E por qual motivo você não nos levou lá ainda, Caio?
- Ué! Ninguém pediu...
- Qual a sua dificuldade em entender que eu quero fazer compras? Me leva lá amanhã cedo!
- Amanhã cedo? E o treinamento?
- Caio? Você também dormiu? Não ouviu a Nilva falando que amanhã nós iremos entrar às 11?
- Ela falou isso? Quando?
- Falou, Caio! Falou sim...
- Quando ela falou, ele tinha ido ao banheiro – falou Gabriel.
- Ah, é? – perguntei. – Não sabia. Então dá pra levar sim, mas vai ter que ser bem cedinho!
- Cedinho? – ela ergueu as sobrancelhas. – Cedinho que horas?
- Umas 6 a gente tem que sair daqui.
- 6 da madrugada? Acho que estou mudando de ideia.
- Decida-se.
- É brincadeira, pode ser sim. Preciso comprar umas coisas...
- Mulheres! – Gabriel entrou no elevador.
- Nem vem que você vai com a gente – Jana agarrou nosso amigo.
- Vou?
- Vai! Quem vai carregar as sacolas?
- É pra isso que eu sirvo, né Janaína?
- Pra isso e pra outras coisinhas a mais. Beijos, até amanhã!
- O que será que ela quis dizer com essas “coisinhas a mais”? – ele me perguntou quando a porta do elevador fechou.
- Você entendeu, não se faça de desentendido!
Ele deu uma risadinha safada e abriu a porta. Não havia nada melhor que chegar e ver o quarto arrumado, limpo e cheiroso.
- Que delícia que está aqui. Limpinho, cheirosinho... – comentei.
- Verdade. Quem vai pro banho? Eu ou você?
- Você. Vai lá!
- Valeu, estou mesmo precisando de uma ducha.?
- Fica à vontade.
Deitei na cama e fiquei olhando pro teto do quarto. Muitas coisas passaram pela minha cabeça e de repente bateu uma saudade de todos que eu amava... Do Bruno, da minha mãe, do meu irmão, da Dona Elvira... Mais do que nunca eu precisava sair, espairecer, colocar a mente no lugar...
O que será que o Bruno estava fazendo naquele momento? Será que estava pensando em mim? Será que ele ainda lembrava que eu existia?
E minha mãe? Meu irmão? Fazia mais de um ano que eu não falava com a Dona Fátima e quase dois que eu não ouvia a voz do meu gêmeo. Quanta saudade!
E a Dona Elvira? Será que estava bem em Minas? Por que ela não me mandava notícias? Será que havia esquecido meu telefone e perdido meu endereço?
O único que eu não queria saber, o único que eu fazia questão de não ter notícias, era o meu pai. Por mim, ele podia sumir do mapa, desaparecer que não ia me fazer falta.
Por outro lado, ele era meu pai! Querendo ou não, foi ele que me deu a oportunidade de nascer, de conhecer o mundo... Por mais que ele me odiasse, ele era meu pai. Meu pai e eu devia respeitá-lo como tal.
O problema era respeitar um ser que me fez tão mal. Um ser que me humilhou, que me chamou de verme e de tantas outras coisas. Um ser que me bateu, me espancou, me jogou pra fora de casa como quem joga um saco de lixo... Um ser repugnante que não merecia o meu amor de filho e não merecia nem que eu o chamasse de “pai”.
Que espécie de pai era essa? Que espécie de pai era ele que mandou o filho embora só porque ele é homossexual?
Eu estava confuso e com a cabeça cheia de pensamentos. Fazia tanto tempo que eu não pensava naquele assunto! Por que diabos isso veio me atormentar naquele momento?
- Ânimo! – me levantei e fui procurar uma roupa para sair. – Você não pode mais pensar nisso, não depois de tanto tempo.
- Falando sozinho? – não ouvi ele se aproximar de mim.
- Pensando alto.
Percebi que quase não tinha mais cuecas limpas. O que eu ia fazer?
- Preciso lavar minhas cuecas...
- Lava no chuveiro, é isso que eu faço.
- E onde eu vou deixar secando?
- Na varanda, Caio. Atrás do motor do ar condicionado.
- Hã?
- Vem comigo – ele me puxou. – Está vendo esse negócio aí?
- Hã?
- É uma espécie de motor pro ar condicionado. Ele esquenta. Coloca suas cuecas aí no chão que rapidinho elas vão secar.
- Por que não me disse isso antes?
- Porque você não me perguntou!
- E eu me matando aqui pensando como ia fazer pra lavar as cuecas...
- Pensei que você tinha mandado pra lavanderia.
- Como? O limite de roupas para a lavanderia é de 10 peças por semana. Impossível. Mandei duas apenas.
- Zoado, hein? Daqui uns dias você ia andar sem cueca – ele riu.
- Né? Obrigado pela dica, vou pro banho!
- Não demora, eu quero fazer a barba.
Mas eu demorei porque levei todas as minhas cuecas e meias para lavar. Segui a orientação dele e lavei as roupas enquanto tomava banho. O único problema foi ter que usar meu xampu para fazer isso.
- Pobre é uma desgraça mesmo – suspirei.
Mas o importante era as peças ficarem limpas para serem utilizadas e no final das contas, tudo deu certo.
- Está se arrumando? Vai sair?
- Uhum.
- E onde nós vamos?
- Desculpa, Gabo. Eu vou sair sozinho. Quero respirar um pouco, pensar um pouco.
- Ah... Obrigado por me excluir da sua vida – ele fingiu se lamentar.
- Não estou te excluindo, estou apenas sendo sincero. Eu vou visitar uns amigos.
- Sei.
- É verdade – garanti. Eu estava pensando em ir no Víctor. – Juro por Deus!
- Não precisa jurar, eu acredito em você.
- Muito obrigado.
- Mas antes de você sair, pode passar creme de novo nas minhas costas?
- Claro!
E eu era bobo em recusar aquele pedido?
- Já estou descascando?
- Ainda não, mas não está mais tão vermelho como antes.
Contudo, a pele dele ainda estava muito quente.
- Passa mais um pouco aqui nos ombros, por favor.
- Desse jeito vai acabar o creme da Alexia.
- Ela me deu de presente!
- Ah, é? Mas o presente que você quer é outro, né?
- Lógico! – ele sorriu. – Não vejo a hora dela liberar a bocetinha...
- Vocês já ficaram por acaso?
- Várias vezes – ele falou.
- Quando? Quando? Eu nem percebi?
- Você e a Jana são dois sonsos! A gente fica desde o Rio...
- Por que não me falou antes?
- Pensei que você soubesse.
- Não! Ninguém me fala nada. Caralho, eu não acredito.
- É a gente fica sim, mas ela está regulando demais.
- Quanto tempo isso?
- Um mês e pouquinho.
- E ainda não foram?
- Não – ele balançou a cabeça. – Ela sempre inventa ma desculpa.
- Vocês sabem disfarçar bem então. E nem ficam na nossa frente. Por quê?
- Porque não. É bom escondido. Nem fala pra ela que eu te contei isso, viu?
- Deixa comigo. Estou bege!
- Besta – ele riu. – Estou tentando convencê-la a dar pra mim aqui no hotel. Vou aproveitar que você vai sair pra tentar rolar.
- Na sua cama, por favor – eu brinquei e fiquei de pau duro na hora.
- Claro que é na minha, moleque. Se rolar eu te conto.
- Por favor!!! Pronto, terminei.
- Valeu. Você é um amigão!
- Dez reais. Sua conta está aumentando, hein?
- Dia 31 de fevereiro eu pago.
- Engraçadinho. Até mais tarde e juízo, garoto.
- Pode deixar.
- Pode deixar – ele sorriu novamente.


Foi só abrir a porta e dar de cara com o Carlos. Eu havia esquecido totalmente que ele tinha pedido pra mexer na internet...
- Oi! – ele abriu aquele sorriso lindo.
- Oi – tentei retribuir o sorriso.
- Está de saída?
- Hã... Na verdade, sim...
- Então eu volto outra hora... – o sorriso se desfez e eu fiquei me sentindo culpado.
- Não, imagina! Pode entrar...
- Não, não! Eu não quero atrapalhar a sua saída...
- Eu faço questão, pode entrar!
- De jeito nenhum – ele balançou a cabeça negativamente. – Não vou atrapalhar os seus planos.
- Não vai atrapalhar, eu posso esperar você utilizar a internet, sem problema algum.
- Não, Caio, obrigado. Não quero mesmo estragar seus planos por minha causa.
- Você não está estragando – e não estava mesmo. – Entra, por favor?
- Mesmo? – ele abriu o sorriso novamente.
- Uhum – retribuí como pude.
- Já que você insiste... Com licença!
- Fica à vontade!
- E aí, Gabriel? – Carlos cumprimentou meu amigo. – Tudo bom?
- Bem e você?
- Bem! Licença, Caio. Prometo que serei breve. Só uns 15 minutinhos,
- Sem problemas, fica tranquilo.
E ele foi bem pontual. Em exatos 15 minutos, Carlos Henrique fechou o meu computador, se levantou e colocou a cadeira embaixo da mesa.
- Já? – me espantei.
- Já! Eu disse que seria rápido.
- Se quiser, pode ficar mais um pouco, viu?
- Não, não tem necessidade. Já fiz tudo o que precisava fazer. Muito obrigado!
- Imagina, se precisar pode contar.
- Obrigado mesmo.
Acabou que nós pegamos o elevador juntos. Quando ele desceu no andar do quarto dele, Henrique estendeu a mão direita e disse:
- Obrigado novamente, você é muito gente fina.
- Disponha sempre que precisar.
- Obrigado! Boa saída.
- Valeu, Carlos!


Pisar de novo no meu bairro depois de tanto tempo não foi muito legal. Se antes eu já estava pensando em tudo o que havia acontecido no passado, naquele momento então tudo voltou à tona e eu fiquei realmente muito balançado.
- Calma, Caio. Calma!
Estava sentindo uma vontade enorme de passar na frente da minha casa, mas não tive coragem. E se eu encontrasse algum familiar lá? Não, não. Eu não podia abusar da sorte!
Sendo assim, fui direto pra casa do Víctor. Lá eu estaria seguro e tinha certeza que nada de ruim iria me acontecer.


- Caio!!! – ele exclamou de felicidade quando me viu no portão. – Que bom que veio.
Ele me recepcionou com um abraço forte. Nem parecia que a gente tinha se visto há pouco tempo.
- Vamos entrar!
- Tudo bem por aqui? – perguntei.
- Tudo! Eu estou sozinho.
- Ah, é? Onde estão seus pais e sua avó?
- Todos viajando. Minha avó foi para a casa da minha tia lá no Mato Grosso e meus pais estão viajando a trabalho, como sempre.
- Você nem está aprontando, né?
- Imagina! Sou quase um santo!
- Santo do pau oco. Lembro bem o quanto você aprontou na boate no Rio, viu?
- E eu lembro de tudo o que você fez também seu safado!
- Nem ligo – dei risada.
- Vem cá, vamos pra cozinha, eu estou fazendo brigadeiro!
- Brigadeiro? Adoro brigadeiro! Cheguei na hora certa!
Eu nunca tinha visto tanta sujeira em toda a minha vida. Para fazer brigadeiro, o Víctor sujou quase a louça toda da casa.
- Não me enche o saco – ele continuou trabalhando sem ligar para o que eu falei. – Me  ajuda com essa louça?
- Não vai me fazer lavar louça, vai?
- Ah, me ajuda!
Ou eu era um idiota, ou era muito bonzinho. O meu senso de organização berrou dentro de mim quando viu toda aquela bagunça e eu não sosseguei enquanto não deixei a cozinha um brinco.
- Aí sim, hein? – Víctor gostou do resultado. – Adorei sua visita!
- Cara de pau! Me deve uma. Me conta os babados!
- Não tem babado nenhum não.
- Nenhuma novidade? Não pegou ninguém?
- Não! E você? Já passou o rodo em São Paulo?
- Não! Ainda nem fui pra balada. Queria ir em uma GLS, mas meus amigos vão desconfiar.
- Simples: é só você inventar que vai em um aniversário de um amigo seu! Quando você vai voltar pro Rio?
- Ainda vou ficar um tempo aqui.
- É fácil, olha só... No próximo final de semana você leva seus amigos para uma balada hétero.
- Hum?
- No outro, você inventa que vai em um aniversário ou em um evento qualquer na casa dos seus amigos daqui de Sampa e aí dá um perdido neles e cai na noite gay!
- Até que você não é tão burro assim, Victor!
- Burro é a senhora sua mãe, idiota! Eu sou um crânio.
- Nâo é a toa que você tem a cabeça maior que uma jaca!
- Infeliz! Quebro seus dentes, cachorro.
- Você me ama, garoto!
- Hum, sabe o que eu vou fazer?
- Não!
- Vou ligar pra Amandoca pra ela vir aqui!
- Agora?!
- Agora! Já volto!
Rever a Amanda seria bom demais para ser verdade. Eu só acreditei que isso ia acontecer quando ela chegou na casa do meu amigo Víctor.
- Posso saber por qual motivo você me queria aqui agora? – ela suspirou.
- Tenho uma surpresa pra você – Víctor estava animado.
Quando ela me viu, os olhos da garota ficaram esbugalhados. Ela estava tão mudada...
- Cauã? O que você está fazendo aqui?
Víctor e eu demos risada.
- Tudo bem, Amanda? – eu me levantei e fui até ela.
- Por que trouxe o Cauã aqui? Pensei que vocês não se gostassem...
- Tem certeza que é o Cauã? – perguntou Víctor.
- Não me diga que é o... CAIO?
Eu gargalhei e agarrei a minha amiga. Ela era uma das pessoas que me fazia falta.
- Não acredito que é você, seu louco! Que saudades!!!
- Também, Amandoca! Também!
- Nossa, você continua o mesmo, hein?
- Já você, está toda mudada, né? Mais magra, cabelo curto e pintado... O que aconteceu com você? Te fizeram uma lavagem cerebral?
- Ah, cansei do meu look antigo. Quis dar uma repaginada! Mas me conta, desde quando você está aqui? Voltou de vez?
- Não, não! Eu estou só à trabalho. Volto pro Rio daqui umas duas semanas mais ou menos...
- Nossa, que maravilha! Por que não me procurou antes?
- Não sei. Não tive muito tempo ainda. Mas aqui estou eu!
- Nem acredito, parece até um sonho! Você está igualzinho ao seu irmão!
- Sério?
- Idêntico.
- Eles são gêmeos, né? – Víctor riu.
- Mas eu falo no estilo das roupas, no cabelo... Acho que a única diferença entre vocês é a cor da pele. Você está mais moreninho que ele.
- Desculpa, gata! Agora eu moro no Rio, colo na praia quase todo final de semana!
- Metido! Que inveja de você. Qualquer dia eu vou te fazer uma visitinha.
- Será muito bem-vinda. Pode ter certeza.
- Sentem-se – pediu Victor. – Vamos saborear meus brigadeiros!
- Não posso, estou de dieta – disse Amanda. – Vai ficar pra próxima.
Só que ela não resistiu e acabou comendo um. Um só, mas comeu.
- Ficou no ponto – eu me acabei com os brigadeiros. – Uma delícia!
- Só tem uma coisa melhor que brigadeiro – disse Víctor.
- O quê?! – Amanda e eu perguntamos.
- Sexo!
Caímos na risada. Ele tinha razão.
- Mas me conta, Monteiro! Como tudo aconteceu? Até hoje a gente não entendeu direito como você saiu daqui de Sampa.
- É uma longa história, Amandoca...
- Conte, conte. Eu estou te ouvindo!
Expliquei tudo nos mínimos detalhes. Como ela e toda a escola onde eu estudava já haviam sabido pela boca do meu irmão que eu era gay, não tive o que esconder dela e acabei abrindo todo o jogo. A moça me ouviu atentamente.
- Que barra você passou, hein? – ela só falou isso quando eu contei tudo.
- Nem me fala. Quase morri de fome, pensei em me matar... Mas cá estou eu, vivo e feliz; apesar dos pesares!
- Essa história aí do suicídio eu não estava sabendo – falou Víctor.
- Eu esqueci de te contar mesmo, foi mau.
- Se matar por causa de um infeliz que não te merece? Se você tivesse feito isso eu tinha te matado! – disse Amanda.
- Ah, legal. Eu ia morrer duas vezes?
- Só pra ter certeza que você estaria morto mesmo, entendeu?
- Ah, entendi! Bom saber que você também gosta de mim, Amandoca!
- Nós sentimos muito a sua falta – ela falou. – Ficamos muito preocupados, sem saber se você estava bem...
- Sem saber se você estava vivo – falou Víctor.
- Eu sei meninos! Eu também senti muito a falta de vocês e até da minha família, mas graças a Deus deu tudo certo. Hoje eu estou bem e posso dizer sem medo de errar que eu venci tudo isso.
- Graças a Deus mesmo – falou Amanda. – Deve ter sido duro, muito duro.
- Muito. Você não tem noção. Não tem nada pior do que ser rejeitado e nada pior do que entrar em depressão. É algo horrível! Só o que você quer é colocar um ponto final na sua vida.
- Deus me livre! – ela bateu na mesa.
- Foi a pior fase da minha vida, mas passou!
- Isso, agora é tocar o presente e pensar no fururo – disse Víctor.
- Mas vem cá? Você pretende voltar pra São Paulo?
- Não sei, Amanda! Não sei mesmo. Nesse momento não. Vou começar a trabalhar agora, vou tentar fazer faculdade ano que vem... Nesse momento a minha vida está lá. Mas quem sabe no futuro?
- É quem sabe? Só espero que agora a gente não perca mais o contato, né? Nem no Orkut você fala com a gente.
- Eu quase não entro, amor. E quando entro, quase sempre encontro meu ex online e isso me irrita e eu saio sem falar com ninguém.
- Bloqueia e exclui esse lixo – bufou Víctor.
- Não consigo – fui sincero. – É difícil!
- Sinal que você ainda gosta dele – falou Amanda.
- Não sei! Eu fico em dúvida...
Amanda, Víctoe e eu ficamos conversando por horas e mais horas. Ela me contou como o tio dela foi assassinado, me contou como andava a vida no geral e nós acabamos optando por assistir um filme na televisão. Eu só saí da casa dele depois das 10 da noite.
- Vê se não some e vem me visitar de novo antes de você viajar, viu?
- Pode deixar!
- Vai lá em casa também, Caio! – Amanda me convidou.
- Irei sim. Prometo que volto antes de viajar.
- Assim espero – Víctor me abraçou.
- Agora deixa eu ir andando, não quero ser visto por ninguém – falei.
- Seu hotel é longe daqui, mano.
- Mas vai que o Cauã passa por aqui...
- Isso é – Amanda concordou. – Como são idênticos, meu Deus.
- E ao mesmo tempo tão diferentes – Víctor suspirou.
- Verdade. Bom te ver, Amandoca! Até mais, gente. Beijos!
- Cuidado, hein? – pediu Víctor.
- Pode deixar!
Eu tinha duas opções para voltar pro hotel: metrô ou ônibus.
Se eu fosse de metrô, teria que andar mais ou menos 40 minutos até a Linha Vermelha. Se eu fosse de ônibus, não andaria tanto, mas teria que passar praticamente em frente da casa dos meus pais.
- E agora?
Fiquei dividido e sem saber o que fazer. Pegar o metrô seria bom porque eu não ia passar perto da minha antiga casa, mas por outro lado, eu queria passar perto dela...
Algo dentro do meu ser me dizia para eu pegar o ônibus. Acho que no fundo, bem no fundo, eu queria rever a minha casa. A quem eu queria enganar? Eu queria rever minha casa, rever minha mãe, meu irmão... Para que ficar sofrendo se eu tinha a oportunidade de resolver tudo?
Então eu decidi que não ia adiar mais esse desejo imenso de voltar às minhas origens. Voltar onde tudo aconteceu, voltar no local onde eu passei os melhores e piores momentos da minha vida...
Caminhei lentamente pela calçada e fiquei olhando as casas da vizinhança. Tudo estava igual, nada havia mudado. Que saudades! Que saudade daquele bairro, que saudade da minha infância e do começo da minha adolescência...
Saudade de jogar bola na frente da minha casa... Saudade de soltar pipa com meu irmão e os nossos vizinhos... Saudade de cabular aula para ir na casa de um amigo ou amiga para assistir filme... Saudade de brincar de pega-pega e esconde-esconde com o Cauã... Saudade de apertar a campainha dos vizinhos e sair correndo...
Foi naquele bairro que eu cresci. Foi naquele bairro que eu aprendi a andar de bicicleta, a andar de patins, a andar de skate... Era naquela rua que eu brincava, era naquela rua que eu corria atrás do meu irmão e que ele também corria atrás de mim...
Foi naquele bairro que eu descobri as coisas boas e ruins da vida... Foi ali onde eu descobri o que é ser gay... Foi lá que eu aprendi o que é o preconceito, o que é ser humilhado pela família, pelos amigos, pela sociedade... Foi em Higienópolis que eu aprendi a viver!
- E aí, Cauã? – um garoto me cumprimentou, pensando que eu era meu irmão gêmeo.
- Opa! – a minha voz saiu trêmula. Eu queria chorar.
E realmente chorei. Chorei de saudades, chorei de dor, chorei porque lembrei da minha infância e porque lembrei também que mesmo tendo os nossos momentos de rivalidade, mesmo tendo nossas disputas e várias brigas, o meu irmão e eu soubemos aproveitar a época em que éramos crianças!
Por que tudo teve que mudar? Por que nós tivemos que crescer? Por que eu não continuei criança para sempre? Pelo menos quando eu era criança, meu pai me aceitava, meu pai me amava...
Como aqueles momentos em família me fizeram falta naquele momento. Tudo o que eu queria e necessitava era de um colo, mas não podia ser um colo qualquer. Eu queria o colo da minha mãe!
Durante os dois anos que eu estava no Rio de Janeiro, eu fiz questão de deixar todos esses sentimentos esquecidos dentro do meu coração, mas foi impossível mantê-los trancados por muito mais tempo.
Eu era um ser humano de carne e osso e não há uma pessoa que aguente ser forte por toda a vida. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde, tudo voltaria à tona e voltou mesmo.
Voltou com mais força ainda quando meus olhos caíram no portão da minha casa. Ela estava idêntica, exatamente idêntica desde a última vez que eu a vira.
Senti vontade de sair correndo e entrar. Entrar na minha casa, entrar no meu quarto e cair na minha cama!
Mas será que eu ainda tinha uma cama? O que será que meu pai havia feito com o meu quarto? Provavelmente deveria ter feito uma espécie de porão... Do jeito que ele me odiava, eu não duvidava nada que esse tivesse sido o destino do meus antigos aposentos...
Ah, como eu queria poder voltar a pisar naquele chão! Como eu queria rever a minha bike, meus patins velhos e meu skate quebrado. Como eu queria rever cada cômodo da minha casa, cada centímetro do meu lar... Só eu sabia o quanto aquilo me fazia falta.
Foram 16 anos vivendo naquele lugar. A maioria desses anos foi de felicidade. Houve momentos de tristeza, de dor, de dúvida e desespero, mas foram anos felizes...
Será que havia alguém? Ou será que eles tinham saído?
Se eu fosse cumprir o meu roteiro à risca, teria que virar na esquina para pegar o ônibus na rua paralela, mas eu não o fiz. Eu precisava, necessitava muito ver aquela casa mais de perto.
Parecia até que as minhas pernas estavam andando sozinhas e tinham vontade própria. Eu só parei de andar quando eu cheguei em frente ao meu antigo lar. Sim! Eles estavam em casa. A luz estava acesa e o carro do meu pai estava na garagem. O mesmo carro de antes. A bike do meu irmão estava no mesmo lugar de sempre e também era a mesma, mas a minha não estava mais lá.
Pela janela, consegui notar que alguém estava assistindo televisão na sala. Quem seria? Provavelmente o meu pai... Ele gostava de assistir televisão naquele horário...
Sequei as lágrimas e suspirei várias vezes. Passei a mão na campainha e pensei em tocá-la, mas eu não queria ser humilhado. Era melhor eu ir embora...
Era melhor eu voltar para a clandestinidade. Eles não queriam mais saber de mim e não tinha porque eu ficar insistindo naquele assunto. Era o melhor a ser feito...
Abaixei a cabeça e saí andando. Já tinha visto a casa, mas ainda queria ficar ali por mais tempo. Por que tudo teve que acontecer daquele jeito? Por quê?
Por sorte, o ônibus chegou rapidamente. Eu entrei, paguei a passagem e fui sentar no último banco do lado do cobrador. Minha cabeça estava fervendo e eu acabei ficando cansado, mas nem o cansaço fez a saudade que eu estava sentindo diminuir dentro do meu peito.
O que me restava naquele momento era deixar a saudade ali, no meu peito, sem que eu pudesse fazer nada para diminuí-la ou curá-la.
Eu sabia que não tinha jeito de vê-los, de falar com eles. Eles não queriam saber de mim e era melhor sentir saudade do que alimentar uma falsa esperança. Eu tinha certeza que não era bem-vindo naquela casa, então era melhor não pender para aqueles lados. O jeito era aguentar calado e deixar aquele sentimento adormecido dentro de mim. Eu não tinha alternativa.







- MISERICÓRDIA – Janaína se exaltou. – Que inferno é esse, Caio?
- Calma! Não grita – eu pedi. – Essa hora o metrô é um pouco cheio.
- Um pouco? Você chama isso de um pouco?
- Na boa? – Gabriel nos puxou para trás. – Não vai dar para entrar aí não.
- Vamos esperar o próximo – recomendei.
Mas nem no outro a gente conseguiu entrar. A estação estava tão cheia, que estava difícil até de se mexer.
- SOCORRO – Janaína gritou de novo quando o povo começou a nos empurrar para entrar.
- Cala a boca, sua louca – Alexia mandou. – AI MEU PÉ!
- FALA DE MIM! PARA DE ME EMPUIRRAR!
Nós fomos literalmente carregados para dentro do trem e quando entramos, não conseguimos mais nos mexer.
- Puta que pariu, eu tô em uma lata de sardinha.... – Janaína comentou.
Como o Gabriel estava ao meu lado, a mão dele ficou literalmente em cima do meu volume.
- Desculpa – ele ficou muito vermelho. – Não consigo me mexer.
- Sem problemas – eu também fiquei vermelho.
- Caio, pelo amor de Deus, o que é isso?
- Calma, Janaína!
O trem só se mexeu depois de uns 3 minutos, porque as portas não conseguiam fechar devido ao número de pessoas. Alguém provavelmente estava com o braço, o pé, ou a bolsa para fora do trem.
- Caio, são quantas estações? – indagou Alexia.
- 4.
- Louvado seja Deus – Janaína estava atrás da gente.
Quando finalmente chegou o nosso destino, não precisei fazer nenhum esforço. As pessoas praticamente me jogaram pra fora e eu me senti aliviado quando consegui respirar novamente.
- Caralho, isso aqui é muito lotado – reclamou Gabriel. – Nunca mais quero pegar metrô essa hora nessa cidade.
- Nem eu! – exclamou Alexia.
- Hoje está vazio! – brinquei.
- Até parece! – eles falaram ao mesmo tempo.
- Venham, me sigam!
Comecei a andar e só depois lembrei que a Janaína não estava com a gente. Será que ela tinha ficado dentro do trem?
- ESPEREM POR MIM, ESPEREM POR MIM!
Eu olhei pra trás e automaticamente caí na gargalhada. Ela estava totalmente descabelada, com metade da blusa dentro da saia e metade pra fora, com um ombro da blusinha caído e para piorar, ela estava pulando com um pé só igual ao Saci-Pererê!
- Cadê seu sapato, Jana? – perguntou Gabriel.
De repente, não mais que de repente, eu senti uma bolsada na minha orelha.
- MINHA SANDÁLIA NOVINHA FICOU DENTRO DO TREM, SEU DESGRAÇADO! EU VOU TE MATAR, CAIO MONTEIRO!


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