terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo 7

A
cho que o Seu Manollo se compadeceu de minha situação, porquê o tempo que ele havia dado pra eu conseguir o dinheiro já tinha acabado e mesmo assim ele não me despejou do quartinho. Entretanto, a minha fome só aumentava. Eu já tinha emagrecido mais de 3 quilos devido a falta de comida.
Certo dia, não aguentando mais aquela situação, resolvi sair da hospedaria para ver se encontrava alguma alma caridosa que me desse alguma coisa para comer, mas estava tão fraco que não conseguia andar direito.
Mesmo sem forças, não desisti e continuei seguindo meu caminho. Eu ia encontrar alguma coisa pra comer, nem que fosse... no lixo...

Contudo, depois de meia hora de caminhada, avistei uma igreja e resolvi entrar. Eu precisava pedir forças a Deus, precisava pedir ajuda e não existia lugar melhor do que uma igreja para se conectar com as energias celestiais.

Chegando lá, fui até próximo do altar, me ajoelhei e comecei a rezar. Meu desespero era tão forte que comecei a chorar e acabei chamando a atenção do padre da paróquia.

- Você está bem, meu filho? – perguntou o sacerdote.
Não tive coragem de responder. Só balancei a cabeça negativamente.
- Você está pálido. Está passando mal?
- Fome – só foi o que consegui dizer.
O padre estendeu a mão e abriu um sorriso.
- Venha comigo, meu filho. Venha comigo.
Não pensei duas vezes. Com dificuldade, me levantei e segui o servo de Deus até a sacristia.
- Sente-se. Eu vou trazer alguma coisa pra você comer.
Eu sentei em um banquinho de madeira e esperei o homem voltar ansiosamente. Estava tão faminto que as minhas vistas estavam começando a escurecer. Comecei a me sentir um pouco tonto.
- Venha, meu filho, venha – o padre chamou.
Eu o acompanhei e ele me levou até uma mesa, onde tinha pães, bolos e alguns salgados.
  
– Pode se servir à vontade.
Eu olhei pro padre e o agradeci com o olhar. Minhas lágrimas caíram silenciosamente e eu me servi. Quando a comida caiu no meu estômago, me senti ainda mais faminto do que já estava.
Enquanto eu comia, ele não falou nada, só ficou me observando com a fisionomia serena. Nem o nome dele eu sabia, mas já estava eternamente agradecido por aquele ato de caridade.

- Obrigado – finalmente agradeci, quando engoli a última gota do suco de laranja. – Muito obrigado.
- Está se sentindo melhor?
- Sim – respondi com sinceridade. – Muito melhor.
- Como você se chama?
- Caio.
- Muito bem, Caio. Já está satisfeito? – ele abriu um sorriso.
- Já sim, padre. Muito obrigado. O senhor salvou a minha vida.
- É o meu dever ajudar a quem precisa. Como se sente?
- Muito melhor – repeti. – Graças a Deus.
- Onde você mora?
- Eu não sou daqui. Sou de São Paulo.
- E o que está fazendo tão longe de casa?
Respirei fundo.
- Não quer contar?
- Não, padre, não é isso. É que é muito doloroso.
- Acho que desabafar vai lhe fazer bem. E quem sabe eu possa te ajudar?
Não tinha nada a perder se contasse o que tinha acontecido, então abri o jogo com o homem. Enquanto eu falei, ele não me interrompeu e não tirou os olhos dos meus um segundo sequer.
- E então eu resolvi vir pra cá. Estou morando em uma hospedaria na Lapa há pouco mais de um mês, mas a minha situação está muito complicada. Não tenho dinheiro, não tenho como pagar a diária, estou passando fome e preciso urgentemente de um trabalho.
- Seu pai não deveria ter feito o que fez com você, meu filho.
- Meu pai é muito conservador, padre. Ele não aceita ter um filho gay. Minha mãe não fica atrás e não me ajudou em praticamente nada. Veja, ela queria que eu procurasse um pastor para que ele me “libertasse”. Disse que eu estou doente.
- É difícil para os pais aceitarem essas condições. Você tem que entendê-los e acima de tudo, perdoá-los.
- Perdoar? Não sei se sou capaz, padre. O que meu pai fez comigo nem o tempo conseguirá apagar. Doeu e está doendo muito. Muito mesmo.
- O tempo é o nosso aliado, Caio. Nada melhor que o tempo pra curar as feridas da alma.
- Acho que nem em mil anos eu serei capaz de esquecer tudo o que aconteceu, padre. Foi muito difícil.
- Eu entendo, mas você não deve se preocupar. Tente não sofrer mais e confie em Deus, Ele irá te ajudar.
- Eu confio muito, padre. Tanto é que resolvi entrar aqui.
- Talvez você tenha sido guiado. Nada nessa vida acontece por acaso.
- É verdade.
- Você disse que precisa de um emprego?
- Preciso urgentemente.
- E o que você sabe fazer?
- Não tenho experiência em nada, mas eu posso aprender. Na situação em que me encontro não posso me dar ao luxo de escolher um emprego. Tenho que aceitar o primeiro que aparecer.
- Sendo assim, acho que posso ajudá-lo.
O meu coração acelerou e eu fiquei empolgado.
- Verdade, padre?
- Verdade sim. Você pode me acompanhar por um minuto?
- Claro, claro que sim!!!
Dei um salto da cadeira e sacudi o pó de pão que tinha ficado na minha camiseta. O padre sorriu e começou a andar. Eu o segui com o coração na boca de tanta ansiedade.
Nós andamos por menos de 10 minutos e chegamos em um tipo de armazém, onde tinha tudo que se pudesse imaginar: de comida a utensílios domésticos e produtos de limpeza
.
- Padre João, que prazer em vê-lo – disse uma senhora aparentemente muito simpática. – Sua bênção?
- Deus te abençoe. Dona Elvira, preciso de sua ajuda.
- Em que posso servir?
- Esse rapazinho precisa de um emprego.

A senhora olhou pra mim e abriu um sorriso sincero. Eu abaixei meus olhos e senti vergonha. Como era duro ter que depender dos outros.
- De um emprego? Mas tão novinho assim?
- Ele está passando por dificuldades. Está sozinho no mundo e não tem o que comer. Precisa de um emprego pra sobreviver.
- Bem, não posso oferecer muita coisa... Quase não há o que fazer aqui.
- Eu aceito qualquer coisa – falei com a voz trêmula.
- Bem, na verdade, seria muito bom ter uma companhia aqui no mercado, mas eu não posso pagar um salário alto...
- Nâo tem problema, senhora. Não tem problema. Eu aceito o que a senhora puder pagar...
Ela me fitou com compaixão e suspirou. Eu estava esperançoso, porém aflito.
- Está bem. Está bem, não posso negar um pedido do Padre João!!!
Meu coração bateu aliviado. Eu estava até me sentindo mais leve. Muito mais leve.
- Obrigado, senhora. Obrigado mesmo. Muito obrigado...
- E quando ele pode começar? – perguntou o Padre João.
- Quando quiser.
- Posso começar agora mesmo se a senhora desejar.
- Não – ela sorriu. - Vá descansar. Você pode vir amanhã de manhã.
- Como quiser, senhora. Como quiser!!!
- Amanhã acertamos o valor do pagamento.
- Tudo bem. Amanhã estarei aqui bem cedo.
- Pode vir às nove. Não precisa ser muito cedo porque só abro nesse horário.
- Tudo bem. Muito obrigado, senhora. Muito obrigado mesmo. De coração!!!
- É um prazer poder ajudar.
- Deus abençoe esse coração bondoso, Dona Elvira – disse o padre.
- É sempre um prazer ajudar o próximo, Padre.
- Muito obrigado, Padre João – eu agradeci com sinceridade. – Muito obrigado mesmo.
- Não agradeça a mim, filho. Agradeça a Deus. Foi Ele que te trouxe até a minha igreja.
- Pode ter certeza que eu vou agradecer, Padre.
- Tenho certeza que as coisas vão melhorar para você. Confie em Deus.
- Eu confio, Padre. Eu confio.
O sacerdote abriu um sorriso e me abençoou. Eu estava me sentindo feliz. Finalmente tinha conseguido um emprego, finalmente ia conseguir comprar comida e pagar as diárias da hospedaria. Finalmente as coisas estavam começando a dar certo.
Fiz questão de comunicar ao Seu Manollo que eu já tinha emprego e que assim que recebesse o primeiro ordenado, eu pagaria todas as minhas despesas pendentes. Ele ficou mais calmo e não tocou mais no assunto do meu despejo. Tudo estava se encaixando, graças a Deus.
Naquela noite nem consegui dormir direito de tanta ansiedade. Estava agradecido por ter conseguido alguma coisa pra comer. Aquele ditado que diz que “Deus não desampara ninguém” é realmente verdadeiro, porque na hora de maior desespero, Ele me mostrou aquela igreja. Acho que se não tivesse entrado lá, talvez tivesse desmaiado de tanta fome.
Contudo, o que eu comi na igreja do Padre João não foi suficiente pra me manter saciado por muito tempo. Antes mesmo de pegar no sono, já estava novamente com a barriga vazia, mas nada comparado a sensação que estava antes de entrar na sacristia.
Quando o dia clareou, logo me coloquei de pé. Tomei um banho e me arrumei como pude, já que a maioria das minhas roupas estava suja ou molhada.
- À partir de hoje, a minha vida vai mudar!!! – garanti a mim mesmo.
E eu tinha certeza que ia. Saí às oito e meia e rapidamente cheguei ao mercadinho da Dona Elvira.
- Bom dia, Dona Elvira – falei, timidamente.
- Bom dia, Caio. Tudo bem?
- Graças a Deus, as coisas estão se encaixando.
- Pode entrar, fique à vontade.
- Obrigado.
Eu entrei e fiquei sem saber o que fazer.
- Vou te explicar qual é a rotina daqui. Você vai ver que é tudo super tranquilo.
O sotaque dos cariocas me fascinava. E aos poucos eu já estava começando a pegar as gírias e aprendendo a falar como eles.
A empresária me explicou que aquele mercado era de seu falecido esposo e que após a sua partida, ela resolveu ficar à frente do estabelecimento. Uma vez que ela não tinha filhos e seus irmãos não moravam no Rio, o comércio era  a sua única distração e ela ficava ali a maior parte do tempo.
- Vai ser bom ter você por aqui, pelo menos poderá me ajudar com as mercadorias.
- É só me explicar o que eu tenho que fazer. Faço qualquer coisa.
- Fique tranquilo. Logo você irá aprender tudo. Primeiro, quero combinar o seu pagamento.
Eu não tinha como fazer nenhuma exigência, portanto, ela ficou de me pagar R$ 80,00 por semana. Não era muita coisa, todavia, pra quem não tinha nada como eu já era um grande avanço.
- E você tem quantos anos?
- 16 – respondi.
- Tão novinho... O que houve com a sua família?
- Eu fui expulso de casa – expliquei.
- Sangue de Cristo tem poder!!! O que você fez pra ser expulso de casa, menino?
Não tive alternativa a não ser explicar o ocorrido.
- Virgem Santíssima, que absurdo – ela discriminou a reação da minha família. – Um menino tão bonito como você não merece passar por isso. Coitadinho...
- Já estou me acostumando...
- Acalme-se. Tudo vai dar certo e eu tenho certeza que seus pais vão voltar atrás e vão lhe aceitar do jeito que você é.
- Duvido muito, viu? Eles sempre preferiram meu irmão.
- Seu irmão é o primogênito?
- Somos gêmeos.
- Ah, que gracinha. Sempre quis ter filhos gêmeos, mas não foi da vontade de Deus.
Ficamos conversando por um tempão e na hora do almoço, ela me liberou para comer alguma coisa.
- Acho que você não tem com que comer, né? – ela se compadeceu.
Balancei a cabeça negativamente e abaixei meus olhos, com vergonha. Senti as minhas bochechas esquentarem.
- Tome, meu filho. Vá almoçar em paz – ela me entregou uma quantia em dinheiro. Senti um nó na minha garganta.
- O-obrigado, Dona Elvira.
- E esse valor é extra, hein?
- Muito obrigado mesmo.
- Vá almoçar, você deve estar faminto, coitadinho.
- Com licença. Volto logo.
- Pode fazer uma hora de almoço.
- Como a senhora desejar.
Saí do armazém e fui ao único bar que conhecia para almoçar. Fazia tanto tempo que eu não comia arroz e feijão que quase engoli a refeição sem mastigar.
- E esse é para você jantar – ela me entregou outra quantia em dinheiro no término do expediente.
- Não precisa, Dona Elvira. Não precisa se preocupar...
- Faço questão. Eu vou ajudá-lo até você se reestabelecer, meu filho.

Meus olhos se encheram de lágrimas.
- Nem sei como agradecer.
- É um prazer poder ajudar você, Caio. No pouco tempo que te conheço, já te considero como um filho.
- Fico muito agradecido. Um dia eu vou retribuir tudo o que a senhora está fazendo por mim. Eu prometo!
- Não tem nada que retribuir. Faço de coração.
Nos despedimos e eu voltei pra hospedaria do Seu Manollo. Quando cheguei na recepção, pedi a minha chave e pedi também que ele somasse a minha dívida. Eu queria pagar o quanto antes.
- R$ 220,00 – ele respondeu.
- Não vou poder pagar tudo de uma vez – comentei, um pouco constrangido –, mas eu prometo que vou dando aos poucos. Só vou pedir mais um pouquinho de sua paciência, Seu Manollo, por favor...
- Tá bem, garoto. Tá bem. Quem esperou até agora espera mais uma semana.
- Muito obrigado, Seu Manollo. Obrigado mesmo.
- De nada, de nada – disse, um pouco zangado.
No fundo, ele era uma boa pessoa e precisava de dinheiro tanto quanto eu. Eu fazia questão de pagar tudo o que estava devendo. Tudo mesmo.
Precisei usar o dinheiro que a Dona Elvira me deu para comprar sabonete e material de higiene. Apesar de nunca ter passado por aquilo, eu já estava até acostumado a tomar banho gelado e a passar frio durante a noite.
Mas tudo ia melhorar. Eu tinha fé que ia melhorar.
Praticamente todas as noites eu caía no choro. Ou por saudade da minha família, ou por raiva devido tudo o que estava acontecendo, ou por gratidão por Deus ter mandado pessoas maravilhosas para me ajudar.
A verdade era que quanto mais o tempo passava, menos eu conseguia esquecer o que tinha acontecido. E quanto mais eu pensava em tudo aquilo, mais rancor entrava dentro do meu coração.
Dali a dois dias seria o meu aniversário e aquele seria o primeiro que eu iria passar longe dos meus pais e do meu irmão. Por pior que fosse o meu relacionamento com o Cauã, nós estávamos ligados desde o ventre de nossa mãe e quase nunca ficávamos separados, muito menos no nosso aniversário.
Mas eu tinha que me acostumar. A minha vida não era mais a mesma e aquele era o preço que eu estava pagando por ter sido tão irresponsável e não ter me precavido antes de ver aquele site erótico gay.
Pensei no Víctor e resolvi escrever uma carta pra ele, já que eu não tinha condições de ligar no celular dele e não queria ligar à cobrar em sua casa. Precisava economizar ao máximo se quisesse dar a volta por cima.
Peguei o meu caderno da escola, arranquei uma folha limpa, peguei uma caneta no estojo e comecei a escrever. Desabafei naquele papel e quando dei por mim, as lágrimas já estavam molhando a folha e borrando a minha letra.

Terminei a carta reforçando a minha promessa de pagar a minha dívida assim que tivesse condições financeiras. Eu só não sabia quando aquilo ia acontecer.
Na manhã seguinte, Dona Elvira me cedeu um envelope e eu fui aos Correios na hora do almoço. Coloquei a carta e me perguntei mentalmente quanto tempo ela demoraria pra chegar ao destinatário. Será que ia demorar?
Eu era um tipo de ajudante-geral no mercadinho da Dona Elvira. Fazia de tudo um pouco: desde a limpeza até o pagamento de contas no banco. A Dona Elvira confiava em mim e aquilo me deixou contente. Era bom passar confiança às pessoas depois de tudo o que eu tinha passado.
Naquele dia, a única coisa que eu consegui pensar foi no Cauã. Nosso aniversário estava chegando e eu fiquei me perguntando como ele estaria se sentindo longe de mim pela primeira vez desde o nosso nascimento.
Cheguei a conclusão que meu irmão deveria estar feliz da vida. Ele me considerava um estorvo e já que não estava por perto, provavelmente ele deveria estar curtindo como se fosse filho único.
E era o que ele era naquele momento. Filho único. 17 anos depois de nossa  chegada ao mundo, Cauã virou filho único. Já eu, virei solitário. Essa era a nossa diferença.
Nós, que éramos tão parecidos fisicamente, naquele momento éramos totalmente opostos. Cauã era um, eu era outro e eu não sabia mais até onde nossas semelhanças iam.
Acabei chegando a conclusão, que nós éramos sim idênticos, mas ao mesmo tempo únicos. Cauã morava em São Paulo e eu no Rio de Janero. Centenas de quilômetros nos separavam e por mais que nós fossemos irmãos gêmeos, naquele instante éramos apaenas dois pontos idênticos, cada um em seu devido lugar. E assim seria por muito, muito tempo.
Quando a meia noite chegou e meu relógio de pulso apitou, eu suspirei, fechei os olhos e automaticamente senti uma lágrima cair. Era meu aniversário. O meu 17º aniversário, mas ao mesmo tempo parecia ser o primeiro. E não deixava de ser, uma vez que eu tinha iniciado uma vida nova há poucos meses.
Era como se eu estivesse esperando eles entrarem no meu quarto. No meu íntimo, eu ouvia as vozes de meu pai e minha mãe me parabenizando, porém tudo não passava de ilusão. Eles não estavam ali. E nunca mais estariam.
- Feliz aniversário, Caio Monteiro – falei para mim mesmo e pela primeira vez, ninguém respondeu ou me cumprimentou. Eu estava mesmo sozinho.

F
oi um dia tristonho e solitário. Ninguém no Rio sabia que eu estava completando mais um ano de vida e eu também não quis comentar o fato para não parecer interesseiro. 

17 anos. Mais um ano e eu estaria maior de idade. Aquilo me deixou um pouco preocupado, pois eu estava no 2º ano do colegial e não estava estudando. Precisava procurar uma escola o quanto antes. Precisava me formar no ensino médio.
Por esse motivo, conversei com a Dona Elvira e expliquei o que estava acontecendo. Ela me apoiou a continuar os estudos e me ajudou a procurar uma escola, logo na manhã seguinte.
Foi difícil ser aceito, mas depois de muita conversa com a direção, eles resolveram abrir uma exceção. Era a minha vida que estava começando a entrar nos eixos.
Foi difícil fazer amizades naquela escola. Eu me sentia um peixinho fora d’água porque todos conversavam entre si e somente eu ficava isolado no meu canto. Aquilo acabava me deixando chateado, mas pelo menos eu estava estudando. Aquilo é que de fato importava.
Com a minha vida um pouco mais estabilizada, aos poucos comecei a conseguir as minhas coisas. Consegui comprar um tênis novo e já não estava mais devendo na hospedaria. Uma dor de cabeça a menos. E que dor de cabeça.
Semanas depois, eu recebi a resposta da carta que tinha mandado ao meu melhor amigo. Víctor me respondeu feliz da vida por ter recebido notícias minhas. Relatou que estava muito preocupado comigo e que tinha se arrependido em ter apoiado a minha loucura, mas que estava feliz em saber que as coisas estavam se encaixando. Naquele dia mesmo eu escrevi a resposta, porém só coloquei nos Correios dias depois.
Certo dia, Dona Elvira me recepcionou eufórica e elétrica. Aquilo me deixou encucado:
- O que houve, Dona Elvira?
- Tenho uma notícia maravilhosa pra você, Caio!!!
Meu coração acelerou.
- O que houve?
- Acabei de ver no jornal que uma empresa de telemarketing está recrutando menores aprendizes para trabalhar com eles.
- Hã?
- É, olha aqui nos classificados.

Eu abri o jornal e li onde ela tinha indicou. Eram cinco vagas e o salário era mínimo.
- O salário é mínimo, mas é mais do que eu posso te pagar aqui, filho! Uma ótima oportunidade para você conseguir morar em um lugar melhor e conseguir uma qualidade de vida também.
- Não está satisfeita com meu trabalho, Dona Elvira?
- Não, querido, não é isso. Eu adoro você, você veio na hora certa e por mim ficaria aqui para sempre, mas acontece que voce merece receber um dinheirinho a mais e eu acho que essa é uma excelente oportunidade...
- A senhora tem razão, mas eu fico triste só de pensar em sair daqui. Me acostumei com a senhora e a trabalhar aqui.
- Mas olha, pelo que sei lá é meio período. Nas suas férias da escola você pode voltar e ficar aqui de manhã e lá à tarde. Ou vice-versa!!!
Não pensei duas vezes. Peguei o número do telefone da empresa e ali mesmo, do mercadinho da Dona Elvira, entrei em contato com eles e agendei uma entrevista para a segunda-feira da semana seguinte.
Uma nova luz no fim do túnel começou a brilhar pra mim à partir daquele momento. Eu comecei a sonhar alto. Se fosse contratado, teria condições de morar em uma pensão ou em uma hospedaria um pouco melhor. Ou talvez simplesmente me mudar para um quartinho mais confortável lá na Hospedaria do Seu Manollo mesmo.
A Dona Elvira tinha razão. Era muito bom trabalhar com ela, afinal nós já tínhamos criado um vínculo, mas ela não podia me pagar muito e muitas vezes eu tinha que optar entre almoçar ou pagar a diária do Seu Manollo. Se eu fosse trabalhar naquele Call Center, talvez tivesse a oportunidade de conquistar outras coisas.
Mas será que ia dar certo? Será que eu ia me adaptar àquela nova situação? Eu nunca tinha me imaginado trabalhando com telemarketing... contudo, o que custaria tentar? E se desse certo? E se a minha vida desse uma guinada?
Como sempre, a minha cabeça estava cheia de perguntas e eu não conseguia responder nenhuma, mas eu tinha que deixar o medo de lado e encarar os meus desafios. E eu não ia desistir. A certeza do não eu já tinha, e se viesse o sim? A minha vida poderia mudar. E eu só ia saber se arriscasse a sorte.
Estava tão ansioso pela chegada da segunda-feira que acho que o até passou mais devagar só pra aumentar o meu nervosismo.
- Calma, Caio – Dona Elvira deu risada. – Vai dar tudo certo.
- Estou muito ansioso, Dona Elvira.
- Eu sei, querido, mas tudo vai se encaixar, você vai ver.
- Assim espero.
- Quando você começar a receber mais, vai poder sair daquela hospedaria xexelenta onde você mora, né?
- Nâo sei, Dona Elvira. Eu preciso economizar dinheiro, não posso me dar ao luxo de simplesmente sair gastando assim...
- Você é bem ajuizado, menino. Dá até gosto de ver.
- Obrigado. Eu tento planejar as coisas antes de tomar alguma decisão.
- E você está mais do que certo.
- Uhum.
Sempre fui assim e isso é coisa de virginianos!
- Caio, você já falou com sua família depois que mudou pra cá?
- Não – respondi de imediato.
- Não sente saudade deles?
Suspirei.
- A dor é maior que a saudade, Dona Elvira.
- Não pode ser tão rancoroso, meu filho – ela me aconselhou. – Lembre-se que perdoar é divino.
- Sim eu sei, mas por mais que eu tente; por mais que eu procure uma forma de perdoá-los, eu não encontro.
- Pensa em voltar para São Paulo?
- Sinto muita falta de lá. Foi lá que eu cresci; é lá que estão as minhas raízes, só que eu me apaixonei pelo Rio. Não sei mais viver sem praia.
- Aqui é lindo, não é?
- É maravilhoso.
- Mas ainda assim, se eu fosse você procuraria sua família pelo menos pra dar notícias.
- Tenho certeza que eles não querem saber de notícias minhas.
- Como você pode ter tanta certeza assim?
- Eu conheço minha família, Dona Elvira. Meu pai vai preferir ouvir a voz do diabo ao ouvir a minha.
- Credo em cruz, Ave Maria Puríssima!!! – ela se benzeu e eu ri.
- Estou falando sério. A senhora imagina que ele alegou que eu era filho do demônio?
- Misericórdia, Caio!!! A situação é mais feia do que eu pensei.
- Acho que ele nasceu no século XIX A.C, Dona Elvira.
- Como uma pessoa pode dizer isso de um filho? Mas a recompensa dele vem. Ah, vem...
- A justiça de Deus tarda, mas não falha.
- É isso mesmo.

Quando a segunda-feira chegou, eu coloquei a melhor roupa que tinha e fui até a empresa de telefonia para fazer a entrevista. Chegando lá, entreguei meu currículo, preenchi uma ficha de emprego, fiz uma provinha de português e matemática, uma redação e uma dinâmica em grupo.

- Cacete, odeio esses problemas de matemática – falei comigo mesmo enquanto coçava a cabeça com a caneta.
Se tinha uma coisa que eu detestava na vida, essa coisa era a tal da matemática. Eu me enquadrava direitinho no grupo de estudantes avessos a matéria. Ainda bem que consegui responder todas as perguntas antes do tempo estipulado pela empresa acabar.
- Caio Monteiro? – chamou a entrevistadora.
Entrei em uma salinha e sentei em uma cadeira giratória. A moça ficou de frente pra mim.

- Tudo bem, Caio?
- Tudo sim.
- Vai ser só um bate-papo pra ver se você tem o perfil ideal pra vaga, tudo bem?
- Sim, sim.
Ela começou a fazer várias perguntas e eu tentei não ficar muito nervoso – embora fosse impossível, visto que aquela era a primeira entrevista da minha vida.
Depois de uns 10 minutos respondendo ao questionário, a mulher pediu que eu me retirasse e aguardasse junto aos demais candidatos. A resposta ia sair naquele mesmo dia.
E realmente saiu. Depois do último entrevistado sair, ela chamou algumas pessoas e eles entraram em outra sala. Meu coração ficou apertado, porque ela não me chamou e eu fiquei com os outros participantes. Tinha certeza que não tinha passado.
Porém, rapidamente ela apareceu e chamou a todos nós. Meu coração estava acelerado e as minhas pernas bambas. A decepção estava tomando conta do meu corpo. O que eu ia fazer, meu Deus? Não podia ficar a mercê da Dona Elvira pro resto da vida!!!
- Bom, pessoal, parabéns. Vocês foram selecionados...

Acho que se eu não estivesse sentado teria desmaiado de tanta emoção. Ela foi falando e as palavras entravam por um ouvido e saíam pelo outro, de tão extasiado que eu fiquei.
- Preciso que vocês tragam essa listagem de documentos até quarta-feira para a assinatura do contrato. Vale lembrar que o contrato expira quando vocês atingirem a maioridade e não poderá ser renovado. Se quiserem continuar na empresa, terão que participar de outro processo seletivo.
Eu passei os olhos pela lista de documentos e pela primeira vez me toquei que não tinha carteira de trabalho. Como eu faria para tirar aquele documento?
- Então é isso. Muito obrigada. Sejam bem-vindos e nós contamos com todos vocês até quarta-feira.
Nos despedimos uns dos outros e saímos da empresa. Parecia que eu estava flutuando enquanto caminhava pela calçada. Ainda não estava acreditando que eu tinha passado nos testes de seleção
.

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